Resolução de política afirmativa aprovada pelo Co é insuficiente e não deve promover ingresso significativo de docentes negras e negros na USP
Co aprovou resolução tímida de política afirmativa (foto: Cecília Bastos/USP Imagens)

A proposta de ação afirmativa para preto(a)s, pardo(a)s e indígenas (PPI) nos concursos públicos da USP, encaminhada pela Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) e aprovada pelo Conselho Universitário (Co) em reunião extraordinária na última segunda-feira (22/5), foi considerada insuficiente por representantes do Grupo de Docentes Negras e Negros da universidade para que se atinja a meta de presença de 37% de pessoas PPI no quadro docente e de pessoal técnico-administrativo. O número equivale à participação dessa população no Estado de São Paulo, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A resolução aprovada, que regulamenta o artigo 126-A do Regimento Geral da USP, determina que, nos concursos ou processos seletivos em que o número de vagas oferecidas seja igual ou superior a três, serão reservadas 20% das vagas a candidato(a)s PPI, conforme preconiza a lei 12.990/2014, válida para os processos na administração pública federal.

Nos certames que oferecem uma ou duas vagas, o(a)s candidato(a)s PPI receberão uma pontuação diferenciada, de acordo com o estabelecido no Decreto Estadual nº 63.979/2018.

A oferta de uma ou duas vagas é o padrão dos concursos docentes. De acordo com levantamento da Folha de S. Paulo, de 140 editais lançados e concluídos para contratação de professor titular e professor doutor na USP em 2022, apenas um previa a abertura de mais de três vagas.

O texto aprovado no Co prevê que “ao final do período de 3 (três) anos e a partir dos relatórios produzidos, a presente política afirmativa será reanalisada”, havendo a possibilidade de promoção de “reformas que se mostrem cabíveis”.

“A proposta é insuficiente porque o critério de bônus não garante efetivamente num prazo curto que se tenha o percentual desejável de docentes negras e negros, ou seja, de 37%. A posição da maior parte dos integrantes do coletivo de docentes negras e negros é de que essa proposta não contempla as nossas demandas”, disse ao Informativo Adusp o professor Dennis de Oliveira, docente da Escola de Comunicações e Artes (ECA) e do programa de pós-graduação em Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH). “Sou muito pessimista quanto a haver em três anos uma mudança significativa no número de negras e negros no quadro docente da USP.”

De acordo com Oliveira, o dado positivo da proposta é a previsão de avaliação ao final do período de três anos. O professor lamenta que a proposta entregue ao reitor pelo Grupo de Docentes Negras e Negros em novembro do ano passado não tenha sido levada em conta.

Oliveira lembra que os mecanismos de concessão de bônus para ingresso na graduação não foram suficientes para que a USP atingisse o percentual mínimo de 37% de estudantes PPI, o que só passou a ocorrer com a adoção das cotas étnico-raciais, a partir de 2017. “A reivindicação continua”, diz.

Destaque que previa avaliação dos resultados antes de três anos foi rejeitado

A proposta entregue pelo coletivo preconizava que todos os concursos deveriam ter reservas de vagas “até o atendimento mínimo de 37% do quadro da unidade”. Em nota divulgada antes da reunião do Co, o grupo apontava, entre outros itens, que o texto da Reitoria não previa prazo para que se alcance a meta de 37%.

“Desta forma reafirmamos nossas propostas de ações afirmativas e incentivamos ao Co que, após a aprovação neste primeiro momento, de uma política em favor da igualdade racial na Universidade de São Paulo, aprofunde o debate das propostas por nós enviadas com toda a comunidade e na sequência as ponha em votação”, diz a nota, que foi lida na íntegra na reunião pelo representante do(a)s professore(a)s associado(a)s, Rodrigo Bissacot Proença.

Em 2022, de acordo com o Anuário Estatístico da USP, 2,29% do(a)s docentes se declararam preto(a)s e pardo(a)s e 0,02%, indígenas. Em relação aos e às servidore(a)s técnico-administrativo(a)s, a proporção de autodeclarados preto(a)s e pardo(a)s é maior no grupo de nível básico: 29,23%. No grupo de nível superior, é de apenas 5,19%.

A partir da aprovação da resolução, a USP vai publicar novos editais para três concursos que oferecem um total de 79 vagas de analista administrativo(a), médico(a) veterinário(a) e procurador(a). Os concursos foram suspensos pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) em março por não prever pontuação diferenciada ou reserva de vagas para pessoas PPI.

A pouca efetividade da proposta foi apontada, com veemência, já na reunião do Co. Tulio Ferreira Leite da Silva, representante discente da pós-graduação, afirmou que “a resolução não é boa”, assim como as leis nas quais ela se baseia. “A gente não vai empretecer a universidade, mas é isso que a gente tem hoje”, lamentou.

Tulio qualificou o enfrentamento de questões como o racismo como “emergências” comparáveis à da pandemia da Covid-19 e conclamou a USP a “tratar as urgências com a capacidade que esta universidade tem”.

O estudante propôs a alteração do período de avaliação da política, abrindo a possibilidade de reanálise antes do prazo de três anos previsto no texto. O destaque foi colocado em votação por Carlotti, mas rejeitado pelo Co.

Ao contrário do que fez a PUC-SP, Carlotti Jr. recusa concursos exclusivos

Tulio Ferreira e outro(a)s conselheiro(a)s defenderam a reinclusão no texto do § 3º. do artigo 5º. O parágrafo previa que ficava facultado à Congregação, ao Conselho Deliberativo ou órgão equivalente da unidade “deliberar pela reunião de vagas em concurso único, atraindo a aplicação da reserva de vagas”.

Esse dispositivo constava da minuta original da resolução encaminhada pela PRIP, mas foi excluído da versão votada pelo Co a pedido de Carlotti. O reitor argumentou que reunir as vagas poderia causar problemas em concursos de departamentos diferentes na mesma unidade.

A mesma linha de raciocínio foi utilizada pelo presidente da Comissão de Atividades Acadêmicas (CAA), Pedro Vitoriano. “Me preocupa a junção de vagas. Os concursos não são idênticos. Nossa preocupação é atrasar a execução de alguns concursos fundamentais e necessários”, disse.

Contraditoriamente, no entanto, Carlotti ressalvou que “as congregações já podem fazer isso, não precisa estar escrito”. “Pode fazer, não vejo necessidade de voltar esse artigo”, disse, alegando que a norma criaria uma “artificialidade”, enquanto a resolução visava a “uniformizar em função de uma postura da universidade”.

Carlotti admitiu votar apenas dois destaques no texto: o que possibilitava a avaliação dos resultados da política antes de três anos, citado anteriormente, e outro que alterava de um para dois o número mínimo de membros PPI nas comissões julgadoras dos concursos. “As outras [propostas] acho que ficam fora”, disse. Assim como no primeiro caso, o segundo destaque também foi rejeitado na votação pelo Co.

Entre os destaques recusados estavam os apresentados em ofício encaminhado pelo DCE-Livre “Alexandre Vannucchi Leme”. O DCE-Livre propôs, entre outras alterações, que “para concursos ou processos seletivos cujo número de vagas oferecidas seja, no momento da publicação, de l (uma) vaga, será realizado processo seletivo exclusivo para pessoas pretas, pardas ou indígenas” até que a unidade atinja o percentual de 37%.

“A política de bonificação, embora importante”, salientou a entidade, “é ineficaz para garantir que a USP alcance a mesma porcentagem de docentes PPI que a porcentagem desses grupos na população total do estado de São Paulo. A única política afirmativa capaz de assegurar o atingimento da meta é a reserva de vagas” (destaques do original).

Rosa Batista, representante discente da graduação, também requereu que a resolução incorporasse a reserva de vagas para todos os concursos docentes da USP até que se atingisse os 37% — a exemplo da decisão adotada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Novamente Carlotti não aceitou a proposição. Entre outros alegações, o reitor disse que não conhecia a decisão da PUC-SP, a não ser por notícias da imprensa.

A política de ação afirmativa da PUC-SP, instituição na qual 5,34% do(a)s docentes se autodeclaram negro(a)s, foi aprovada por unanimidade em reunião do seu Conselho Universitário no dia 26/4. A partir do segundo semestre deste ano, todos os concursos docentes abertos “terão que ser destinados, com exclusividade, para candidatos(as) negros(as)” até que a unidade atinja o percentual de ao menos 37% de docentes negro(a)s em seu quadro.

Rosa Batista ressaltou ainda que é preciso respeitar toda a luta construída em torno desse tema pelo esforço do movimento estudantil e do movimento negro. “É muito bom que finalmente tenha sido apresentada, mas a proposta é insuficiente para que haja de fato paridade racial nos quadros da universidade. Não vamos atingir essa meta de 37% em três anos. A bonificação não é reserva de vagas e não garante a paridade racial”, afirmou. Rosa leu na sessão a carta aberta que docentes negras e negros entregaram a Carlotti no ano passado.

Experiência das universidades federais é totalmente ignorada pela Reitoria e Co

O “espírito” da maioria do Co em relação ao tema pode ser resumido nas intervenções do professor Pedro Dallari, diretor do Instituto de Relações Internacionais (IRI) e membro da Comissão de Legislação e Recursos (CLR). Dallari relatou que a CLR propôs a aprovação da resolução sem ignorar o debate que existe na universidade, “mas sugerindo que o Co adote uma composição que reflita o consenso possível e desejado neste momento”. Nas palavras do reitor, “fazer exclusivamente, como a PUC, seria muito complicado tanto do ponto de vista legal quanto do apoio da comunidade”.

Trata-se praticamente de uma admissão de que a resolução introduz uma mudança que, na verdade, muda muito pouco ou quase nada. Porém, ao mesmo tempo que expressa à perfeição o arraigado conservadorismo da universidade, a medida adotada permite à Reitoria fazer o discurso de que a USP adotou uma efetiva política de ação afirmativa.

Noutro momento, Pedro Dallari afirmou que a “vaga destinada exclusivamente não cria cota, cria reserva”, o que seria “frágil juridicamente”.

O comentário não se sustenta. Basta analisar o que tem ocorrido nas universidades federais — que, aliás, não foram citadas em nenhum momento do debate no Co. Carlotti, por sinal, preferiu mencionar modelos de instituições do exterior, como as universidades de Harvard e de Toronto, enquanto a experiência de quase uma década das universidades federais brasileiras no tema foi solenemente ignorada.

Várias delas têm criado mecanismos para cumprir a lei federal de cotas de 2014 – declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal em 2017, o que também afasta o temor de “questionamentos jurídicos” levantado por algumas vozes na reunião.

Um dos modelos adotados nas federais é a reunião de vagas não para a realização de concursos únicos, como se chegou a dizer no Co para rebater o sistema, mas para que a cota de 20% seja estabelecida por sorteio entre as vagas abertas em diferentes departamentos ou mesmo unidades. Assim, a unidade ou departamento sorteado deve abrir concurso exclusivamente para candidato(a)s PPI.

Outro sistema foi adotado na Universidade Federal de Goiás (UFG), conforme relatado pela professora Luciana de Oliveira Dias, secretária de Inclusão da instituição, em seminário promovido pela Adusp. Na UFG, desde 2019, a cada cinco editais lançados, o quinto por ordem de publicação é destinado exclusivamente a pessoas PPI.

Estudante ataca temor de “perda da qualidade”

Como ocorre normalmente nas reuniões do Co, as manifestações críticas às propostas da Reitoria cabem quase exclusivamente às representações de discentes e de funcionários(a)s.

Bárbara Della Torre, representante do(a)s servidore(a)s técnico-administrativo(a)s, lamentou que o movimento negro não tenha sido admitido para defender suas demandas na reunião. O Núcleo de Consciência Negra (NCN) da USP encaminhou ofício à Reitoria no dia 19/5 no qual requeria representação com direito a se manifestar na sessão “para que possamos apresentar aos conselheiros os acúmulos do movimento negro universitário acerca do tema”.

Carlotti, no entanto, disse que não aceitaria a participação. “A presença neste conselho é permitida quando existe a convite do reitor. Se nós aceitarmos em toda reunião uma manifestação dessas em cima da hora para nós termos representantes seja contra seja a favor, ficaria muito ruim para a condução deste conselho”, justificou.

Bárbara ressaltou que a adoção de políticas afirmativas “não é uma concessão da Reitoria, é um direito arrancado pela luta do movimento negro”.

Reinaldo de Souza, também representante dos servidore(a)s, criticou a resolução por não “resolver o problema justamente onde ele é mais grave, ou seja: na categoria docente”.

“A assembleia geral do Sintusp [Sindicato dos Trabalhadores da USP] deliberou votar a favor como indicação da importância histórica da discussão, mas é preciso que a Reitoria se comprometa a ouvir o movimento negro e ter uma nova resolução em breve que resolva o problema no segmento em que ele é mais grave”, reivindicou.
A representante discente da graduação Danielly Oliveira dos Santos atacou o temor de que a qualidade da USP viesse a sofrer um “rebaixamento” com a entrada de mais docentes negros e negras.

A intervenção da estudante fez referência a comentários de Carlotti, que mais de uma vez disse na reunião que a proposta da Reitoria preocupava-se em aumentar “a velocidade da inclusão” ao mesmo tempo que mantinha “a qualidade” da universidade.

“Em todo o documento, em vários locais falamos que nosso regimento já diz que todos os concursos devem ter nota mínima de aprovação. Isso garante que nenhuma pessoa que não tenha a qualificação para aquela função vá assumir, porque a congregação, a unidade, já estabeleceu uma nota mínima”, ressaltou Carlotti. “Começaremos um processo dentro da universidade com bastante cuidado, para que as pessoas tenham a certeza de que será mantida a qualidade.”

“Nenhuma vitória veio por benevolência de ninguém. Veio da luta e de muito sofrimento da juventude pobre e trabalhadora”, afirmou Danielly. “Os estudantes não estão aqui para viver o sonho de vocês, dos brancos e ricos, porque o sonho de vocês muitas vezes representa o nosso pesadelo. E se for para garantir os nossos sonhos, se isso perpassar por transformar a vida de cada um num pesadelo, vai virar. Porque não queremos mais viver o sonho dos outros. A juventude negra, pobre e trabalhadora deste país quer construir os próprios sonhos e viver deles, desde a graduação até ser professor da universidade.”

EXPRESSO ADUSP


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