Terrorismo de Estado
Seis anos depois, a USP ainda ignora doze das 14 recomendações de sua Comissão da Verdade, e as outras duas avançam vagarosamente
Na contramão da Recomendação nº 5 da CV-USP, a gestão Carlotti Jr.-Arminda não só deixa de alterar o “Regimento Disciplinar” de 1972, como processa e ameaça expulsar cinco alunos com base nessa norma herdada da Ditadura Militar
A Comissão da Verdade da Universidade de São Paulo (CV-USP), criada em 2013, na gestão J.G. Rodas-Hélio Nogueira, com a finalidade de apurar os crimes cometidos na instituição durante a Ditadura Militar (1964-1985), publicou seu relatório final em 2018, durante a gestão Vahan Agopyan-Antonio Hernandes.
O primeiro presidente da CV-USP, professor Dalmo Dallari, da Faculdade de Direito (FD), logo percebeu que não contaria com os recursos necessários às tarefas de investigação. Preferiu deixar a função, mas se manteve na comissão. Assumiu a presidência, no seu lugar, em maio de 2014, a professora Janice Theodoro da Silva, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFLCH), que conduziria os trabalhos até o final.
Apesar das dificuldades e deficiências enfrentadas pela CV-USP, que de modo surreal precisou de financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa (Fapesp) para a contratação de seus seis pesquisadores, suas conclusões sobre os crimes cometidos pela Ditadura Militar foram claras, e as Recomendações que formulou foram igualmente específicas e razoavelmente bem definidas.
“A documentação analisada permitiu comprovar que as violações foram cumpridas por uma cadeia de comando que abrangia a Presidência da República, os ministérios militares, os Departamentos de Ordem Política e Social, as polícias e as Assessorias de Segurança e Informação (AESI) estabelecidas nas universidades. Em conjunto, essas instituições realizaram perseguições, eliminaram opositores políticos por meio de cassações, impediram a celebração de contratos de trabalho e realizaram detenções ilegais e arbitrárias, desaparecimentos forçados, torturas, execuções e ocultação de cadáveres”, declarou o relatório final.
Ao todo, a CV-USP fez 14 recomendações à Reitoria, com as finalidades de esclarecimento histórico, reparação de crimes e injustiças cometidos e criação de mecanismos institucionais e outros instrumentos de caráter formativo ou protetivo de direitos humanos (leia a íntegra ao final deste texto). Decorridos seis anos desde a publicação do relatório final, contudo, a quase totalidade dessas recomendações permanece no papel.
Entre as principais recomendações não acatadas pela Reitoria estão a realização de “Ato de Desagravo em homenagem a todos e a todas da comunidade acadêmica que sofreram violências físicas e morais durante a Ditadura Militar” (Recomendação nº 1); a constituição de um “Grupo de Trabalho permanente que dê continuidade ao levantamento de informações em arquivos, à análise dos dados e à tomada de depoimentos” (Recomendação nº 2); e a adequação do Regimento Geral da Universidade, “quanto a sanções disciplinares para o corpo docente e o corpo discente, a fim de compatibilizá-lo com a gestão democrática do ensino, princípio integrante da Constituição Federal” (Recomendação nº 5).
Gestão Carlotti Jr. ameaça expulsar 5 alunos com base no “Regime Disciplinar” de 1972
O Regimento Geral da USP, embora remonte a 1988, incorpora dispositivos do antigo Regimento Disciplinar de 1972 (Decreto 52.906), sintetizados no caput do Artigo 247: “O Regime Disciplinar visa assegurar, manter e preservar a boa ordem, o respeito, os bons costumes e preceitos morais, de forma a garantir a harmônica convivência entre docentes e discentes e a disciplina indispensável às atividades universitárias”.
O artigo 248 do Regimento Geral determina que a sanção máxima aplicável aos estudantes é a “eliminação” (expulsão), que ocorrerá, segundo dispõe o artigo 249, inciso IV, “nos casos em que for demonstrado, por meio de inquérito [sic], ter o aluno praticado falta considerada grave”. O artigo 250, por sua vez, tipifica as faltas. Assim, são elencados nove tipos de atos que constituem “infração disciplinar do aluno, passíveis da sanção segundo a gravidade da falta cometida”. Várias dessas “infrações”, porém, são incompatíveis com a Constituição Federal de 1988 e diversas podem dar margem a julgamentos discricionários.
Desse modo, são atos passíveis de sanção grave pela USP, entre outros: “inutilizar, alterar ou fazer qualquer inscrição em editais ou avisos afixados pela administração” (inciso I); “fazer inscrições em próprios universitários, ou em suas imediações, ou nos objetos de propriedade da USP e afixar cartazes fora dos locais a eles destinados” (II); “praticar ato atentatório à moral ou aos bons costumes” (IV); “perturbar os trabalhos escolares bem como o funcionamento da administração da USP” (VII); “promover manifestação ou propaganda de caráter politico-partidário, racial ou religioso, bem como incitar, promover ou apoiar ausências coletivas aos trabalhos escolares” (VIII); “desobedecer aos preceitos regulamentares constantes dos Regimentos das Unidades, Centros, bem como dos alojamentos e residências em próprios universitários” (IX).
Não são hipóteses remotas. Em 2011, por exemplo, o então reitor J.G. Rodas expulsou por razões políticas, de uma só vez, nada menos do que seis alunos que haviam tomado parte de um processo de ocupação da Reitoria — alguns foram posteriormente reintegrados por decisões judiciais.
Na atual gestão reitoral Carlotti Jr.-Arminda, cinco alunos estão sendo processados por razões políticas, por meio de um processo administrativo disciplinar (PAD) instaurado em novembro de 2023 pela Pró-Reitoria de Graduação, que os acusa de suposta “apologia do ódio”, suposta disseminação de ódio e suposto impedimento de atividades acadêmicas, mas na verdade busca criminalizar protestos desses estudantes em defesa da Palestina e contra Israel.
Na Portaria PRG 004/2023 (vide reprodução), o pró-reitor adjunto Marcos Garcia Neira resolve que os discentes acusados “ficam sujeitos à sanção suspensória ou sanção expulsória previstas no artigo 249, inciso III, parágrafos 1, 2, 3 e 4, e no artigo 250, incisos IV, VII, VIII do Decreto-Lei [sic] 52.906/72 Regimento Geral da USP disposições transitórias [sic]”. Trata-se de uma aplicação, sem qualquer disfarce, do regimento disciplinar herdado da Ditadura Militar.
Assim, o ex-diretor da Faculdade de Educação e pró-reitor adjunto da PRG evoca exatamente os incisos do artigo 250 que proíbem “praticar ato atentatório à moral ou aos bons costumes”, “perturbar os trabalhos escolares bem como o funcionamento da administração da USP”, e, ainda, “promover manifestação ou propaganda de caráter político-partidário, racial ou religioso, bem como incitar, promover ou apoiar ausências coletivas aos trabalhos escolares”.
Reitoria não encaminhou denúncias ao MP, nem pediu explicações ao Exército
Também não há notícia de que, conforme recomendado pela CV-USP, tenham sido encaminhadas ao Ministério Público “informações e documentos coletados por esta Comissão que indiquem a prática de ilícitos penais, administrativos ou civis — estes últimos imprescritíveis, segundo o Superior Tribunal de Justiça — contra estudantes e funcionários da USP, para que o Ministério Público apure os casos e busque a devida responsabilização” (Recomendação nº 6).
Igualmente não há sinal de que tenha sido cumprida a Recomendação nº 13, de que seja solicitado “reconhecimento, pelas Forças Armadas, especialmente pelo II Exército [hoje Comando Militar Sudeste], de sua responsabilidade institucional diante das violações de direitos humanos que ocorreram no âmbito da Universidade, uma vez que a documentação comprovou a relação entre funcionários da Universidade e a cúpula das Forças Armadas e do II Exército na violação dos aludidos direitos”.
Outras importantes providências de caráter educativo e protetivo, e que não carecem de maiores recursos financeiros, permanecem, não obstante, por fazer: “Estímulo às iniciativas que procuram criar, na estrutura curricular da Universidade, disciplinas que contemplem a história política do País e que incentivem o respeito ‘aos direitos humanos e à diversidade cultural’, com o objetivo de efetivar a medida constitucional prevista pela Recomendação número 16 da CNV [Comissão Nacional da Verdade]” (Recomendação nº 4); “Publicação de mural, na sede de cada uma das Faculdades da USP, com indicação de seus respectivos alunos e alunas perseguidos” (Recomendação nº 10); “Criação de Observatório Permanente em Defesa dos Direitos Humanos, composto pluralmente por docentes e discentes” (Recomendação nº 11).
As únicas recomendações que avançaram até o momento, ainda que lentamente, foram a 8, que prevê a “Inclusão, no Memorial aos Membros da Comunidade USP Vítimas do Regime da Ditadura Militar – 1964/1985, localizado na Praça do Relógio do campus de São Paulo, do nome de mais nove vítimas do regime militar”, e a 9, que propõe a “Diplomação dos estudantes que morreram ou desapareceram em razão da violação de seus direitos humanos pela ditadura civil-militar”.
De acordo com o professor Renato Cymbalista, diretor de Direitos Humanos e Políticas de Memória, Justiça e Reparação da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP), a atualização dos nomes do Memorial já está encaminhada. “O monumento será atualizado e reinaugurado ainda neste ano”, declarou ele ao Informativo Adusp Online.
Serão acrescentados aos nomes já inscritos no monumento os de Alexander José Ibsen Voeroes, Boanerges de Souza Massa, Henrique Cintra Ferreira de Ornellas, Jane Vanini, Juan Antonio Carrasco Forrastal, Maria Regina Marcondes Pinto, Miguel Pereira dos Santos, Sérgio Roberto Corrêa e Wânio José de Mattos, conforme prevê a Recomendação nº 8 da CV-USP.
Quando às diplomações simbólicas previstas na Recomendação nº 9, até este momento a USP conferiu diplomas honoríficos apenas a Alexandre Vannucchi Leme e Ronaldo Mouth Queiroz, que foram estudantes do Instituto de Geociências (IGc), em cerimônia realizada em 15 de dezembro de 2023 naquela unidade, com a presença de familiares, amigos, ativistas e representantes da Reitoria. No entanto, Cymbalista garante que o cumprimento da recomendação “está em curso em todas as unidades, com previsão de entrega dos diplomas ainda em 2024, em uma grande ação em parceria com a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de São Paulo, a Pró-Reitoria de Graduação e as 10 unidades da USP que tiveram estudantes assassinados”.
Partindo de levantamento próprio que indica, com base em evidências, o descumprimento da grande maioria das recomendações feitas pela CV-USP, oInformativo Adusp Online solicitou ao professor Cymbalista que indicasse quais medidas estão sendo tomadas pela PRIP para que elas sejam afinal acatadas e executadas pela universidade.
“Foi criada a Diretoria de Direitos Humanos e Políticas de Memória, Justiça e Reparação, que, dentre outras frentes, leva adiante este tema, sem prejuízo da autonomia das unidades e demais órgãos da USP, que realizam muitas ações nesse sentido, e apoiam o cumprimento das recomendações da Comissão da Verdade”, respondeu o docente, porém limitando-se a destacar as medidas relacionadas às recomendações 8 e 9, como indicado acima.
Quanto ao flagrante descumprimento, pela Reitoria, da Recomendação 5 (que trata da revisão das normas disciplinares do Regimento Geral da USP), tendo em vista o processo em andamento contra cinco estudantes instaurado pela PRG em dezembro último, Cymbalista optou por tergiversar, como se as pró-reitorias não integrassem a mesma gestão: “Sobre o referido PAD, ele diz respeito à Pró-Reitoria de Graduação, não à PRIP”, declarou.
Íntegra das Recomendações da Comissão da Verdade da USP
Em seu Relatório Final, a Comissão da Verdade da Universidade de São Paulo concluiu que, no período de 1964 a 1985, a ditadura civil-militar brasileira praticou, de forma sistemática, graves violações aos direitos humanos. A documentação analisada permitiu comprovar que as violações foram cumpridas por uma cadeia de comando que abrangia a Presidência da República, os ministérios militares, os Departamentos de Ordem Política e Social, as polícias e as Assessorias de Segurança e Informação (AESI) estabelecidas nas universidades. Em conjunto, essas instituições realizaram perseguições, eliminaram opositores políticos por meio de cassações, impediram a celebração de contratos de trabalho e realizaram detenções ilegais e arbitrárias, desaparecimentos forçados, torturas, execuções e ocultação de cadáveres.
Tendo em vista os diversos padrões de violação aos direitos humanos descritos no Relatório da Comissão da Verdade da Universidade de São Paulo, as recomendações são as que se seguem:
- Realização de Ato de Desagravo em homenagem a todos e a todas da comunidade acadêmica que sofreram violências físicas e morais durante a ditadura militar;
- Constituição de um Grupo de Trabalho permanente que dê continuidade ao levantamento de informações em arquivos, à análise dos dados e à tomada de depoimentos;
- Organização de acervo digital, com registro adequado de informações, armazenamento e tratamento técnico da documentação já levantada e daquela ainda por levantar, existente em arquivos públicos;
- Estímulo às iniciativas que procuram criar, na estrutura curricular da Universidade, disciplinas que contemplem a história política do País e que incentivem o respeito “aos direitos humanos e à diversidade cultural”, com o objetivo de efetivar a medida constitucional prevista pela Recomendação número 16 da CNV;
- Adequar o Regimento Geral da Universidade, quanto a sanções disciplinares para o corpo docente e o corpo discente, a fim de compatibilizá-lo com a gestão democrática do ensino, princípio integrante da Constituição Federal;
- Encaminhamento, ao Ministério Público, das informações e documentos coletados por esta Comissão que indiquem a prática de ilícitos penais, administrativos ou civis – estes últimos imprescritíveis, segundo o Superior Tribunal de Justiça – contra estudantes e funcionários da USP, para que o Ministério Público apure os casos e busque a devida responsabilização. Recomendar, também, nos casos em que a Administração Pública tenha sido responsabilizada civilmente em decorrência da violação de direitos humanos, que o Estado adote medidas regressivas, administrativas e civis contra aquele que causou o dano;
- Reconhecimento, pela Universidade de São Paulo, do trabalho desenvolvido sem remuneração pela Profa Dra Lúcia Maria Sálvia Coelho, na Faculdade de Medicina, entre 1972 e 1980, cujo contrato não foi formalizado após ela ter sido presa. Ao longo desse período, na previsível expectativa de que seu contrato fosse formalizado, a docente continuou ministrando aulas. A docente reuniu provas de que trabalhava sem contrato.
- Inclusão, no Memorial aos Membros da Comunidade USP Vítimas do Regime da Ditadura Militar – 1964/1985, localizado na Praça do Relógio do campus de São Paulo, do nome de mais nove vítimas do regime militar, já que essas pessoas tiveram em alguma fase de suas vidas vínculo com a USP: Alexander José Ibsen Voeroes, Boanerges de Souza Massa, Henrique Cintra Ferreira de Ornellas, Jane Vanini, Juan Antonio Carrasco Forrastal, Maria Regina Marcondes Pinto, Miguel Pereira dos Santos, Sérgio Roberto Corrêa e Wânio José de Mattos.
- Diplomação dos estudantes que morreram ou desapareceram em razão da violação de seus direitos humanos pela ditadura civil-militar;
- Publicação de mural, na sede de cada uma das Faculdades da USP, com indicação de seus respectivos alunos e alunas perseguidos durante o período da ditadura civil-militar;
- Criação de Observatório Permanente em Defesa dos Direitos Humanos, composto pluralmente por docentes e discentes, para apurar denúncias, denunciar e intervir nos casos de violação dos direitos de estudantes, professores e funcionários no âmbito da Universidade;
- Auxílio na identificação médico-legal das ossadas de desaparecidos políticos que tenham sido enterradas clandestinamente no cemitério de Perus;
- Solicitação de reconhecimento, pelas Forças Armadas, especialmente pelo II Exército, de sua responsabilidade institucional diante das violações de direitos humanos que ocorreram no âmbito da Universidade, uma vez que a documentação comprovou a relação entre funcionários da Universidade e a cúpula das Forças Armadas e do II Exército na violação dos aludidos direitos;
- Estímulo, na Universidade, à realização de pesquisas sobre justiça de transição no País, considerando a necessidade de aperfeiçoamento das instituições públicas e a preservação da memória.
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