Por proposta da Reitoria, o Conselho Universitário (Co) criou, na reunião de novembro de 2023, mais dois “centros de estudos” diretamente vinculados ao Gabinete do Reitor: o Centro de Estudos de Gases de Efeito Estufa (“Research Centre for Greenhouse Gas Innovation – RCGI”, sic) e o Centro de Estudos em Inteligência Artificial e Aprendizado de Máquina (CeIAAM).

Em março, o Co já havia instituído quatro outros “centros”, a saber: Centro de Estudos e Tecnologias Convergentes para Oncologia de Precisão; Centro de Estudos Amazônia Sustentável; Centro de Agricultura Tropical Sustentável; e o Centro de Estudos de Carbono em Agricultura Tropical.

De acordo com o Jornal da USP, órgão oficial da Reitoria, a criação de tais centros “havia sido anunciada pelo reitor Carlos Gilberto Carlotti Junior, em uma reunião realizada com a equipe de dirigentes da Administração Central da Universidade, no final de janeiro, como um dos principais projetos da gestão para o segundo ano de seu mandato” (confira aqui).

A principal razão para a instituição do Centro de Estudos de Gases de Efeito Estufa, segundo o projeto apresentado, é a “forte crença de que o Estado deve trilhar um caminho que vise estabelecer um centro de classe mundial com investigações de pesquisa [sic], inovação e disseminação do conhecimento para contribuir globalmente com soluções para o desafio mais significativo que a humanidade enfrenta no século XXI: as Mudanças Climáticas” (p. 10).

O novo centro pretende coordenar “o desenvolvimento de novas tecnologias para mitigar as emissões de gases de efeito estufa e sustentabilidade, cujo impacto influenciará positivamente as ações para atenuar os efeitos das mudanças climáticas”, e foi organizado “em cinco programas de pesquisa distintos, mas complementares”, a saber: “Soluções baseadas na Natureza”; “Captura e utilização de Carbono”; “Bioenergia com captura e armazenamento de Carbono”; “Gases de Efeito Estufa”; e “Advocacy” [sic].

“O desejo do Estado de São Paulo de fornecer energia segura, ecologicamente correta e diversificada, com mitigação dos gases de efeito estufa, é crucial para o desenvolvimento econômico do nosso Estado e do Brasil em geral”, alega o projeto (p. 11). Além disso, o Centro de Estudos de Gases de Efeito Estufa “reúne uma equipe técnica e científica que esteve envolvida, ao longo dos últimos anos, com problemas nas áreas de energia e meio ambiente” e é formada por acadêmicos de diferentes áreas do conhecimento, e portanto “capaz de trabalhar com assertividade transdisciplinar” (p. 10 e 11).

Ocorre, porém, que o centro criado pelo Co em novembro de 2023 já existe há quase uma década. Isso só é mencionado, porém, no parecer da Comissão de Orçamento e Patrimônio do Co, na p. 59 do projeto, onde se lê: “O RCGI, já existente desde 2014 como um CPE-Fapesp (Centro de Pesquisa em Engenharia) tem o objetivo de ser um centro de estudos de classe mundial, com foco na inovação para a sustentabilidade e mitigação das emissões de gases de efeitos estufa, complementando as experiências da Universidade no apoio à pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico nesses campos. Com a resolução proposta, o Centro ficará vinculado ao Gabinete do Reitor, nos moldes de outros centros recentemente criados […]”.

O RCGI original nasceu com expressivo financiamento da Shell (cerca de 60% da orçamento, cabendo a Fapesp o restante), razão pela qual a empresa petrolífera conta com uma representante sua, a pesquisadora Camila Farias, no comitê executivo do centro. Atualmente outras grandes empresas participam como copatrocinadoras do centro: Total Energies, Petronas, Repsol Sinopec Brasil, Braskem, Eneva, Toyota e Marcopolo.

Resta saber como se dará a relação entre essas corporações privadas e o “novo” RCGI agora vinculado ao Gabinete do Reitor. Também há coincidência entre a equipe de formuladores do novo projeto e o comitê executivo do centro original, caso do diretor executivo e científico do RCGI, Júlio Romano Meneghini, professor da Escola Politécnica (EP), e do diretor do Programa de Bioenergia com Captura e Armazenamento de Carbono, Marcos Silveira Buckeridge, professor e ex-diretor do Instituto de Biocências (IB).

Por sua vez, o Centro de Estudos em Inteligência Artificial e Aprendizado de Máquina teria “a finalidade de atuar como polo de pesquisa e inovação na universidade, referente à Inteligência Artificial e ao Aprendizado de Máquina, promovendo comunicação e sinergia entre grupos, estabelecendo colaborações com outras instituições acadêmicas e não acadêmicas, oferecendo plataformas e recursos compartilhados, transferindo conhecimento e tecnologia, disseminando informações e formando profissionais”, e sua criação visaria “manter a posição de liderança nacional da USP em temas ligados à Inteligência Artificial, ampliando sua posição internacional neste tema”.

No projeto do CeIAAM, admite-se que quatro diferentes grupos com finalidades semelhantes e “financiamento substancial próprio” já atuam na USP: o Centro de Inteligência Artificial USP/IBM/Fapesp (C4AI), a rede Inteligência Artificial Recriando Ambientes (IARA), o Centro de Ciência de Dados (C2D) e o Núcleo Interinstitucional de Linguística Computacional (NILC) (p. 8). O novo centro, porém, propõe-se a oferecer um “espaço comum para visitas e recepções” e funcionar como “elo” entre esses grupos. Sua sede será no InovaUSP, “oferecendo um ambiente neutro [sic] onde pesquisadores de todas as unidades da universidade poderão cooperar livremente”.

Além disso, o projeto anuncia uma futura ligação com o “Distrito da Inovação” a ser criado pela Reitoria no prédio que a gestão J.G. Rodas concebeu como Centro de Convenções, mas deixou inacabado: “o centro deverá estar intimamente relacionado com o Distrito da Inovação da USP, transferindo parte de seu espaço para essa instalação quando estiver operacional” (p. 9), e desse modo “seu caráter [do CeIAAM] de indutor de inovação poderá ser ainda mais enfatizado” (p. 26).

Seis novos centros criam despesas anuais de R$ 825 mil apenas com verbas de representação

A cada centro correspondem duas funções remuneradas por verbas de representação: a de coordenador e a de vice-coordenador. Assim, de acordo com os pareceres emitidos pelo Departamento de Recursos Humanos (DRH) e pela Coordenadoria de Administração Geral (Codage), cada novo centro terá um custo mensal de R$ 11.465,76 e anual de R$ 137.589,12, “já considerados os encargos patronais e a previsão de férias e 13º salário”.

Assim, os seis centros criados em 2023 representam uma despesa total adicional para a universidade de R$ 825.534,12 apenas em verbas de representação. Mas, curiosamente, no caso do CeIAAM, votado na reunião de novembro do Co, tanto os pareceres já citados como os da Procuradoria Geral (PG-USP), da Comissão de Legislação e Recursos (CLR) e até da COP deixaram de apreciar outras despesas previstas no projeto do centro e detalhadamente descritas no item 5, “Recursos e Espaços” (p. 24).

O projeto destaca que a criação do CeIAAM “não exige contratação de docentes nem construção de espaços”, porém requer a aquisição de “equipamento multiusuário compatível com o observado em centros de pesquisa internacionais”, a saber computadores interligados (clusters) dotados de computação gráfica (GPUs) e capazes de realizar as operações necessárias à pesquisa em redes neurais e grandes modelos de linguagem.

“Pretende-se usar recursos alocados para o CeIAAM para a compra de um cluster. Planeja-se que os recursos da universidade sejam chamariz [sic] para parceiros privados interessados na construção de um cluster de tamanho médio que possa ser compartilhado por pesquisadores e que possa ser usado em projetos de pesquisa e inovação com parceiros”, diz o projeto à p. 25. “Pretende-se usar um investimento de aproximadamente R$ 1.500.000,00 de recursos aportados no CeIAAM para dar início a esse processo, idealmente adquirindo um cluster de valor bem mais alto através de parcerias”.

O documento também alude a outros custos. Lembra que a manutenção do cluster requer uma série de cuidados e que “um funcionário deve ser alocado” no novo centro. Diz que, embora não sejam necessárias obras de construção, serão feitos ajustes em espaços já disponíveis, “perfazendo um gasto total de aproximadamente R$ 100.000,00”. Cita gastos em comunicação, à p. 26: “Recursos adicionais alocados no CeIAAM serão utilizados em parte para construção e manutenção de website, contratação de serviços de jornalismo, em montante aproximado de R$ 100.000,00”.

Nenhum dos valores referidos no item “Recursos e Espaços” do projeto do CeIAAM é apreciado ou sequer citado nos pareceres da PG-USP, da Codage ou das comissões ligadas ao Co, que são a CLR e a COP.

“Há um monte de considerações interessantes de fazer sobre este tipo de política científica, questões de quem controla as prioridades, falta de revisão por pares para este tipo de alocação de recursos”, comentou, a pedido do Informativo Adusp Online, o professor Ewout ter Haar, do Departamento de Física Experimental do Instituto de Física (IF). “O que eu diria, por ora, é que se vamos alocar dois cargos, funcionários da Reitoria e espaço no InovaUSP, deveríamos aplicar estes recursos em infraestrutura de tecnologias educacionais, porque precisamos do equivalente a um ‘Centre of Teaching and Learning’, algo que estou dizendo já faz 15 anos”. Haar é o criador da plataforma e-Disciplinas, que exerceu papel relevante na USP durante a pandemia de Covid-19.

Política universalista seria mais adequada, diz professor Sérgio Souto (FZEA)

Convidado pelo Informativo Adusp Online a opinar sobre a constituição de centros de pesquisa temáticos vinculados diretamente ao Gabinete do Reitor, o professor Sérgio Paulo Amaral Souto, responsável pelo Laboratório de Física Aplicada e Instrumentação da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos (FZEA), faz uma distinção preliminar. “Trata-se de iniciativa da gestão central da Universidade, diferentemente de estruturas de pesquisa especializadas oriundas da proposta de livre iniciativa por grupos de docentes atuantes em tema específico”.

No entender do docente, uma vez que a pesquisa é uma das funções da universidade, é desejável o comprometimento da instituição no incentivo de atividades que correspondam a essa finalidade. “Entretanto, uma política de fomento que se concentre somente em determinados temas, por decisão centralizada, em oposição ao financiamento generalizado e amplo, não nos parece desejável. Visto a impossibilidade de vaticínio, sem uma grandíssima possibilidade de erro, das evoluções sociais, tecnológicas e científicas futuras, as ditas áreas de maior impacto são na realidade ‘temas da moda’”, pondera.

Além disso, destaca Souto, os centros de pesquisa propostos são majoritariamente associados a temas prioritariamente financiados pelas agências de fomento. “Este alinhamento da universidade às orientações externas majoritárias não adicionará novas perspectivas no cenário da ciência. Seria mesmo compreensível iniciativa interna da Universidade no fomento de áreas científicas com dificuldades de financiamento externo, atuando de forma ‘anticíclica’, devido às políticas utilitaristas e imediatistas exercidas pelos órgãos de fomento”, acredita ele.

“Frequentemente os resultados práticos da pesquisa científica ocorrem a longo prazo e de forma inesperada, preconizando que uma política universalista seria mais adequada que políticas focalizadas. A focalização dos temas de pesquisa pode trazer benefícios a interesses particulares em detrimento de outros, inclusive de interesse da coletividade. Poderia ser o caso para financiamentos privados, entretanto não nos parece justo, quando toda a sociedade se cotiza, que somente certas áreas sejam prioritariamente atendidas”, adverte. “A liberdade dos temas de pesquisa, dos pesquisadores e sua pluralidade é que garante o contraditório embate de ideias necessárias para crítica e autocrítica nas ciências”.

A seu ver, gerir a ciência “com viés mercadológico, orientada para resultados práticos imediatistas e não como evolução do conhecimento humano”, traz o risco de endossar teses ultraconservadoras contra a própria ciência. “Principalmente no que concerne às ciências básicas e às ciências humanas, devido ao suposto baixo impacto econômico de curto prazo”, diz o professor.

“Esta proposta de pesquisa focada em determinados assuntos se encaixa perfeitamente na definição de ‘universidade operacional’, descrita pela professora Marilena Chauí em vários textos e palestras. Na extensa, embasada e profunda argumentação da professora Chauí, ficam claros os motivos para discordar destas iniciativas da Reitoria da USP, que são a continuidade do direcionamento das atividades acadêmicas da universidade para atender interesses de mercado, um modelo de ‘universidade operacional’”, critica Souto.

Assim, pensa o docente da FZEA, as novas estruturas criadas são expressão de um “neoliberalismo acadêmico”, que acarreta o fim do pensar crítico, das reflexões e questionamentos típicos de uma verdadeira universidade. “Estamos na época do pesquisador executor de tarefas de interesse do mercado. Não mais liberdade nem de tema de pesquisa. Até isto está sendo direcionado”.

EXPRESSO ADUSP


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