A greve estudantil iniciada na segunda quinzena de setembro, tendo como principais eixos a reposição imediata de docentes e avanços substanciais na permanência estudantil, tornou-se alvo de ataques de setores da alta burocracia da universidade, antes e durante o processo de negociações entre a Reitoria e representantes do movimento discente. Além de documentos emitidos por direções de unidades, como ocorreu na Faculdade de Direito (FD), e de “carta aberta” assinada pelo corpo docente da FEA, houve algumas manifestações individuais muito reveladoras.

A primeira delas, ao que parece, foi de Hernan Chaimovich Guralnik, professor emérito do Instituto de Química, ex-pró-reitor de Pesquisa e ex-presidente do Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). No artigo “A greve na USP e suas consequências”, publicado no dia 2/10 no Jornal da USP, Chaimovich, após discorrer sobre os ataques do governo Jair Bolsonaro às universidades públicas, e identificar avanços institucionais na USP (como a criação da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento e a “incorporação da inovação como elemento mobilizador de pesquisa e contato com a sociedade”), questiona o movimento estudantil, além de atacar as entidades representativas das diferentes categorias.

“Mas o fervor revolucionário que se recusa a observar as condições objetivas tende ao fracasso e muitas vezes leva à destruição de instituições públicas que, a muito custo social e um enorme esforço dos contribuintes, alcançaram um destaque comparável ao da USP. É somente dentro dessa ótica que posso entender a presente greve na USP, onde se reivindicam dinâmicas e investimentos impossíveis nas condições objetivas que são olimpicamente ignoradas”, diz Chaimovich no artigo.

“Reivindicar, por exemplo, a contratação imediata de centenas de professores já desconhece, ou pretende desconhecer, todo o arcabouço legal que cerca o rito de contratação de um servidor público. Como disse antes, a USP vem contratando, e claramente pretende recuperar o quadro docente anterior à série de crises que a Universidade enfrentou”, assevera, reproduzindo o discurso da Reitoria. “Mas, para proteger o poder de compra dos atuais docentes e funcionários, aumentar o investimento em infraestrutura, manter a política de permanência, dentre outras responsabilidades essenciais, as contratações devem obedecer a necessidades prementes, à saúde financeira e, ao mesmo tempo, aos preceitos legais”, alega, para em seguida lançar acusações entremeadas de ironias.

“No entanto, eis que a greve continua, com a novilíngua de sempre, intitulando-se movimento de reivindicação legítimo e pacífico. E, ao mesmo tempo, empilhando cadeiras nas entradas das salas, pichando paredes, intimidando alunos, funcionários e professores e impedindo a livre circulação nos campi. Se as reivindicações podem ser legítimas o movimento só é pacífico em novalinguês”, continua Chaimovich, recorrendo a uma variante de conhecida expressão criada pelo escritor George Orwell na obra 1984.

“Um sindicato que manteve a sigla da antiga Associação dos Docentes da USP (Adusp), e pouco representa os professores da USP, afirma que há uma ‘gravíssima situação criada na USP pelas gestões de M. A. Zago e Vahan Agopyan e agravada pela intransigência da gestão Carlotti Jr.-Nascimento Arruda’. O espaço deste artigo não permite uma análise de todo o texto da Adusp”, lamenta. “Mas o leitor, ao ler o texto disponível no site da Adusp, poderia perguntar, por exemplo, quais foram as medidas dos reitores e da vice-reitora citados que contribuíram para a alegada situação, que não é definida no texto. Poder-se-ia perguntar, também, se na novilíngua ADUSPiana seria possível encontrar explicação sobre qual foi a intransigência desta gestão que teria agravado a crise”.

Para alguém que reconhece ter sido diretor da Adusp (em décadas passadas), e fez carreira como servidor público, Chaimovich demonstra desconhecimento de questões básicas tanto da USP como do mundo real. A Adusp sempre foi sindicato, mas a Ditadura Militar (1964-1985) impedia a sindicalização do funcionalismo público, razão pela qual as associações do gênero só puderam assumir-se oficialmente como sindicatos após a Constituição Federal de 1988.

Se a Adusp “pouco representa” a categoria docente, certamente o professor está se referindo àquela parte da categoria que compartilha das intenções e dos projetos das últimas gestões reitorais. Seguramente existe a outra parte, daquelas e daqueles comprometidos com a defesa do caráter público e gratuito da USP, e que se opõem às manobras das gestões, em parceria com os governos estaduais, que levam ao subfinanciamento das universidades públicas estaduais, constantemente denunciado pela Adusp e pelo Fórum das Seis.

Quanto a “quais foram as medidas dos reitores e da vice-reitora que contribuíram para a alegada situação”, basta consultar o site da Adusp para encontrar inúmeras reportagens e documentos que apontam o crescente déficit de professores efetivos, a precarização das condições de trabalho causada pela contratação de docentes temporários(as) etc. A intransigência da gestão atual tornou-se patente ao ignorar a situação de colapso de vários cursos e ao minimizar as reivindicações estudantis e protestos que se acumularam, sem respostas, e desembocaram na greve. Ademais, a Diretoria da Adusp aguarda resposta da Reitoria para uma reunião desde o dia 4 de agosto. Pode-se julgar tal postura como intransigente? Parece que sim.

Por fim, o ex-presidente do CNPq tece uma extravagante analogia. “A calma dos que defendem a excelência está sendo abalada por uma greve que, se mantida, pode ser mais eficiente que as políticas de Bolsonaro para acabar com a excelência e a USP. Os estudantes do DCE, os professores da Adusp e os dirigentes do Sintusp deveriam estar atentos aos comentários das redes sociais que se referem à greve atual”, adverte.

Pelo visto “os que defendem a excelência” não se importam com o fato de que, se a USP perdeu mais de 1.000 docentes por obra de gestões que Hernan elogia no seu artigo (especialmente as de M.A. Zago e V. Agopyan), a “excelência” esteve e ainda está em grande perigo, independentemente dos “comentários das redes sociais”. Ao contrário do que afirma o ex-presidente do CNPq, ao conquistar a contratação de mais 148 docentes e melhores condições de permanência a greve estudantil contribui para defender a USP e a qualidade de seus cursos e pesquisas.

A greve “não nos orgulha”, escreveu Eugenio Bucci, que exerce cargo de confiança do reitor

Outro que publicou artigo “solo” de opinião com ásperas críticas à greve estudantil foi o professor Eugenio Bucci (Escola de Comunicações e Artes), superintendente de Comunicação da USP. Seu texto, intitulado “A greve na USP e seu impasse”, foi publicado pelo Estadão no dia 5 de outubro. Sua principal característica é censurar o movimento estudantil por sua conduta “irracional”, além de conduzir uma operação retórica que elogia as greves em geral por legítimas, mas exclui a greve singular em questão. “A história está cheia de jornadas de lutas estudantis que nos orgulham. Não é o caso da presente greve, é óbvio. Ela não nos orgulha”, crava Bucci.

“O movimento que paralisou as aulas na Universidade de São Paulo (USP) tropeçou num equívoco, caiu dentro dele e, agora, não sabe como sair. Está na cara. Está evidente”, iniciou Bucci, que deve ter escrito um ou dois dias antes da publicação. “Em primeiro lugar, a Reitoria já tomou todas as providências para admitir 879 novos professores e professoras até 2025. Estamos falando de um aumento da ordem de 15% no corpo docente. Não se tem notícia, na história recente da instituição, de um esforço tão substancial de crescimento”. Há de se constatar que a média de perdas de docentes é de mais de 17% em relação a 2014, havendo até unidade com perda de quase metade do corpo docente: a Escola de Enfermagem (46,99%).

Para azar do superintendente de Comunicação, no dia 4 de outubro, véspera da publicação do artigo, a Reitoria propôs na mesa de negociação com o movimento estudantil a contratação de mais 148 docentes, superando assim o famospo pacote de “879 claros docentes” até então defendido e alardeado pelo reitor, e citado por Bucci como “esforço substancial” e sem precedentes “na história recente da instituição”.

Em suma, quando publicadas no artigo, as referências elogiosas e grandiloquentes ao pacote de contratações da Reitoria já se encontravam ultrapassadas e desmentidas pela própria Reitoria. Assim, “está na cara, está evidente”, que a gestão Carlotti Jr.-Nascimento Arruda precisou curvar-se à força do movimento de greve e fazer concessões até então inimagináveis.

No texto publicado pelo Estadão, Bucci também questiona as reivindicações relativas à permanência estudantil, por considerar que esta “nunca esteve tão bem atendida”. Cita a destinação de cerca de R$ 180 milhões por ano, que contempla “um conjunto de aproximadamente 15 mil estudantes, numa política que tem sido considerada modelar por órgãos ligados à educação”.

Deplora, então, a “retórica tão agressiva” do movimento: “Por que uma greve que promete jogar no tudo ou nada? Há motivos racionais que a justifiquem? Bem sabemos que existem problemas agudos em algumas escolas, que pedem providências, mas por que tentar parar toda a USP dessa maneira? Por que tantas falas acusatórias — e infundadas?”. Tenta, desse modo, enquadrar a greve no figurino estético-político que considera ideal e tolerável. A partir desse ponto, ele aprofunda um raciocínio que o texto de Chaimovich apenas insinua (e que Paulo Martins, diretor da FFLCH, já havia escancarado em declarações à Folha de S. Paulo, comparando o movimento estudantil ao bolsonarismo): a greve estaria jogando água no moinho da extrema-direita.

“Os piquetes, organizados pela minoria da minoria, amontoando cadeiras escolares para bloquear portas e corredores das faculdades, ofendem a comunidade e rendem fotografias impactantes, que só servem para abastecer o discurso contrário à vida intelectual, à ciência e às artes”, diz Bucci. “A extrema-direita antidemocrática [sic] exulta, agradecida. Essas imagens são tudo o que ela queria para ilustrar sua propaganda mentirosa contra o financiamento do ensino superior gratuito e contra a liberdade acadêmica”.

Ao final, uma pérola: o autor revela ter sido “membro da diretoria do DCE-Livre da USP e presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto”, admitindo porém que “isso já faz muito tempo”. No entanto, deixa de informar que, na condição de superintendente de Comunicação da USP, exerce um cargo de absoluta confiança do reitor.

Em texto delirante, professor da Filô atribui greve a “pelegos neoliberais”

Na mesma linha de associar a greve à extrema-direita, porém num tom mais delirante, é o artigo “A greve do pelego neoliberal na USP”, publicado no dia 12/10 no site A Terra é Redonda por Rubens Russomano Ricciardi, professor titular do Departamento de Música da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP), a Filô.

“Está claro que a USP precisa resolver a falta de docentes em cursos antigos, bem como rever o processo interrompido de instalação em alguns cursos novos. Ainda assim, na USP, há mecanismos de representação e de participação ampla, os quais podem e devem ser acionados para reivindicações. Verdade seja dita, o diálogo jamais foi impedido pela atual Reitoria”, diz Ricciardi, que é compositor e musicólogo.

Partindo da premissa de que a paralisação foi “sectária”, injustificada, “desproporcional e violenta”, entre outros disparates, Ricciardi conclui que sua (da greve) “estratégia evidente é prejudicar a imagem da USP — chega a ser mesmo uma sabotagem”. Por trás dessa intenção estariam grupos vinculados ao neoliberalismo e “que pretendem a privatização da USP”, descrição que, no entanto, seria mais apropriada para a maioria de apoiadores(as) da Reitoria.

Na visão de Ricciardi, o “pelego neoliberal” se parece com “uma espécie de baluarte moral dos bons costumes identitários, mesmo que servindo igualmente à destruição do Estado social”, e “a sua truculência o aproxima antes do fascismo — sabemos que o neoliberalismo e o fascismo andam juntos como galinhas no terreiro (com todo respeito às galinhas)”.

Em resumo: “Esse pelego neoliberal faz de conta que luta pela USP, mas, por trás, favorece o movimento da sua privatização — estão a serviço dos grandes senhores do mercado de ensino. Por fim, sabemos que o mercado neoliberal prioriza o ensino a distância, sem professores nem pesquisa, sem pensamento crítico nem potencial de transformação”.

A análise feita pelo docente da Filô expressa uma total inversão da realidade, parecendo desconhecer que, na USP, os verdadeiros “baluartes” do neoliberalismo estão dentro da Reitoria e não no movimento estudantil. A privatização da USP, aliás, vem sendo paulatinamente implantada há décadas, com aval de sucessivas gestões reitorais, por meio das fundações privadas ditas “de apoio” e de outros instrumentos, como a política de incentivo e apoio ao “empreendedorismo-inovacionismo” expressa nas medidas da Agência USP de Inovação (Auspin) e dep pró-reitorias e na pronta adesão ao Marco Legal de Ciência e Tecnologia (lei federal 13.243/2016).

Ao comentar os artigos aqui citados, e particularmente este último, o professor Lincoln Secco, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), rebateu a alucinação segundo a qual estudantes são bolsonaristas ou neoliberais porque estariam “manchando” a imagem da universidade pública com greves: “A resistência à greve diz muito sobre a consciência autoritária dessas pessoas. Num país de tradição democrática você se acostuma com o direito à greve e não desqualifica grevistas mesmo discordando deles”.

Outros argumentos de quem se alinha favoravelmente ao movimento dos estudantes poderão ser encontrados, por exemplo, na “Nota do Departamento de Direito do Trabalho e Seguridade Social sobre a greve”, publicada já em 28/9; na “Moção de repúdio à criminalização do movimento estudantil e sindical”, aprovada pela Assembleia Geral da Adusp de 2/10; e no artigo do professor Secco “Greves na USP – um histórico”, publicado por A Terra é Redonda em 2/10.

EXPRESSO ADUSP


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