Debate sobre “trabalho e diversidade na USP” revela permanência de desigualdades e fortes obstáculos à inclusão
Mesa de abertura do evento realizado em 27/11 na FFLCH (foto: Pedro Seno/FFLCH)

Apesar dos avanços institucionais registrados nos últimos anos, ainda há muito que se fazer na USP em relação à diversidade e à superação de obstáculos à inclusão, em especial no tocante aos ambientes de trabalho. Foi o que manifestaram diferentes participantes da mesa de abertura do evento “Trabalho e Diversidade na USP — boas práticas e impasses para a inclusão”, realizado no dia 27 de novembro último na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH).

Participaram da abertura Adrián Pablo Fanjul, diretor da FFLCH, e Silvana de Souza Nascimento, vice-diretore; Ianni Regia Scarcelli, diretora do Instituto de Psicologia (IP); Rogério Monteiro Siqueira, representante da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP); Inácio Maria Poveda Velasco, professor da Faculdade de Direito (FD) e assessor da Secretaria Especial de Pessoas com Deficiência; Teresa Cristina Teles, coordenadora executiva do grupo Diversitas (FFLCH); Camila Santana e Isabelle Pantoja, ambas do Programa de Acolhimento aos Estudantes Cotistas da FFLCH (PAECO); e a professora Gabrielle Weber, vice-presidenta da Adusp.

“O mês da Consciência Negra é um momento que nos convoca a refletir sobre a luta contra o racismo e tudo que ele representa em nossa sociedade, incluindo aí as estruturas e práticas que perpetuam as desigualdades em nossas instituições. A USP, como universidade pública e plural, tem a responsabilidade de ser referência para a reflexão crítica e a construção de políticas e práticas concretas em direção à inclusão e a uma sociedade menos desigual”, propôs Ianni.

“Esse evento busca justamente trazer contribuições nesse sentido, com o objetivo de podermos identificar as necessidades reais, ouvirmos as experiências, e de forma colaborativa construir uma agenda de propostas para promover a efetiva inclusão de pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica, como está colocado no nosso chamado: as pessoas negras, indígenas, com deficiência, pessoas trans, de gênero dissidente, e outros grupos historicamente marginalizados”, explicou a diretora do IP.

“Acreditamos que uma universidade mais diversa é mais forte. E para que isso aconteça, precisamos de ações e práticas estruturadas. Pensar na ampliação da contratação de profissionais ― profissionais mais do que ‘recursos humanos’, porque as pessoas são mais que ‘recursos’ na verdade. Então pensar em profissionais, sempre fundamentados nos princípios da diversidade, para a gente garantir a inclusão de pessoas diversas e de identidades diversas. Esse é um passo importante e talvez o nosso próximo avanço nas nossas políticas afirmativas”, prosseguiu ela.

“No entanto a gente não deve parar por aqui. Precisamos também pensar na criação de áreas funcionais dedicadas à diversidade, principalmente espaços de formação que promovam a troca de saberes, a valorização das culturas e o respeito mútuo como práticas cotidianas. A construção de um ambiente inclusivo deve se dar portanto como uma prioridade em todos os setores da universidade, desde as salas de aula até a gestão administrativa. Para isso é essencial cuidar de nossos ambientes de trabalho, da nossa convivência, e integrando esse modo de conviver e essas práticas à nossa rotina acadêmica institucional”.

No entender de Ianni, é preciso pensar na participação ativa de todos os segmentos da universidade. “Devemos refletir uma abordagem colaborativa e democrática, pois não podemos tratar de questões ligadas à inclusão, pertencimento e diversidade de forma isolada. Por isso vale ressaltar a importância de criar redes de articulação entre unidades da USP e as instituições externas envolvendo estudantes, servidoras e servidores docentes e técnico-administrativos, terceirizados e os diversos coletivos da comunidade. Com essa participação ativa aumentamos as possibilidades de encontrar caminhos mais efetivos para aprimorar as políticas de inclusão e realizar ações concretas”.

A implementação de “boas práticas”, advertiu ela, requer o enfrentamento de impasses, dificuldades e limites. “Esses impasses estão tanto dentro quanto fora da estrutura universitária. Envolvem diferentes camadas da sociedade. O acesso à educação, o mercado de trabalho, o respeito à diversidade e a criação de condições para a permanência são alguns dos desafios que nós temos pela frente. Por isso é fundamental identificar essas barreiras e propor soluções para superá-las”, destacou a diretora do IP. “Precisamos fortalecer então as políticas afirmativas, as cotas raciais, sociais, além das iniciativas de acolhimento para toda a comunidade, garantindo que todos possam não apenas ingressar. Todos não são só estudantes: são trabalhadores também, que possam ingressar e também permanecer, e se desenvolver academicamente e também profissionalmente na universidade”.

A seu ver, alguns passos já foram dados nesse sentido, com a criação da PRIP e das Comissões de Inclusão e Pertencimento (CIPs) nas unidades, “instâncias que têm se mostrado exemplos claros de como a universidade pode dar passos importantes criando estruturas de apoio e desenvolvimento para uma comunidade mais inclusiva”. Porém, “essas iniciativas devem ser ampliadas, e é fundamental não deixar toda a responsabilidade sobre essas instâncias”, mas sim promover uma colaboração mais ampla, envolvendo unidades e setores para que as ações não sejam isoladas.

“Com isso eu gostaria também de destacar a necessidade de construir uma universidade mais engajada e colaborativa, reconhecendo e valorizando a contribuição de cada segmento da universidade, fortalecendo a gestão democrática, onde as decisões são tomadas de forma coletiva, levando em consideração as necessidades e os desafios de todos. Acredito que esse é o caminho para que a USP não seja apenas um centro de excelência acadêmica, mas também um modelo de inclusão, justiça social e equidade. Aliás eu penso que só podemos falar em universidade de excelência se caminharmos de fato na direção de uma universidade inclusiva”.

“Este encontro representa uma oportunidade para a gente avançar na direção de um ambiente universitário mais inclusivo, diverso e acolhedor. A construção dessa universidade não depende uma pessoa ou grupo, mas da contribuição coletiva de todos nós. Então precisamos estar atentas, atentos, às vozes que menos se manifestam, para garantir que todos tenham as mesmas oportunidades de aprendizado, de crescimento e de desenvolvimento dentro da universidade, dentro da USP”.

“Parte do trabalho da universidade hoje é feita por estagiários”, diz diretor da FFLCH

Adrián Fanjul, por sua vez, iniciou sua rápida fala explicando que o tema do evento integra a agenda de questões consideradas críticas pela atual direção da unidade. “Sabemos que existem muitas pesquisas sobre trabalho na universidade, mas não se trata disso. Se trata de pensar como é que a universidade coloca suas práticas em relação à atual, poderíamos chamar, crise do trabalho. A contradição entre um aumento muito grande da precarização, a perda de formas históricas de segurança social, e por outra parte a discussão no mundo, e ultimamente também no Brasil, do 6 x 1, que vimos nas últimas semanas, [discussão] de propostas que aproveitariam o desenvolvimento das forças produtivas para uma maior humanização do trabalho”.

Então, prosseguiu o diretor da FFLCH, “[saber] onde é que a universidade se situa nesse contexto, e a intersecção entre essa problemática e a problemática da inclusão, nos parece [uma questão] especialmente convidativa, precisamente pela necessidade que temos de que a universidade contribua para uma sociedade mais igualitária, ou com mais justiça social”. “E o que vemos hoje é que houve um processo de diminuição do corpo funcional que não foi exatamente planejado, foi mais como resultado de decisões de reduzir. E que parte do trabalho da universidade hoje é feita mediante estagiários, que é uma forma não apenas de precarização, como também de não dar lugar à contratação de profissionais para as diferentes áreas”, enfatizou.

“Embora possamos perceber que há avanços em setores bem específicos, como todo o trabalho que tem feito a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento, a criação do ECOS, por exemplo, que significou a contratação de novos profissionais para uma área específica, pensamos, creio que Ianni explicou isso da melhor maneira, que ainda tem bastante para avançar nesse sentido”, pontuou.

“Nesta jornada, a partir de diferentes eixos temáticos, esses lugares de demanda provavelmente serão explicitados, e a ideia é que no final, depois dos três GTs, possamos chegar a algum documento de conclusões, para uma elaboração que deverá incluir mais setores da universidade. É importante pensar num planejamento das necessidades funcionais relacionadas à inclusão, que contemple uma economia das necessidades, e não apenas um balanço financeiro”.

Cerca de 15% dos novos e novas docentes é PPI, comemora Siqueira

Rogério Siqueira, diretor da Diretoria de Mulheres, Relações Étnico-Raciais e Diversidades da PRIP, falou dos planos em andamento na pró-reitoria. “Primeiro, pensar a diversidade em termos de inclusão, transformar os números da universidade, com políticas de inclusão, de cotas, e toda essa gama de questões que a gente enfrentou nos últimos anos. Dizer que em algumas áreas a gente melhorou bastante, quem é professor da Universidade de São Paulo sabe muito bem como é que mudou a cara dos estudantes na sala de aula, isso foi importantíssimo”.

Mostrou-se igualmente otimista em relação ao ingresso de docentes pretos, pardos e indígenas (PPI): “Desde o ano passado para cá, a gente teve um número razoavelmente interessante de entrada de novos professores pretos e pardos na universidade, mais ou menos 15%. Parece pouco, mas se a gente olhar, a porcentagem de professores pretos e pardos na universidade não dá 3%. Então, estar entrando uma nova leva de professores pretos e pardos para mim, como diretor de Diversidades, me deixa bastante satisfeito”.

Siqueira realçou que “é preciso pensar em maneiras que as pessoas se sintam melhor acolhidas, melhor incluídas na universidade”, indo além dos números. “Criar um ambiente melhor de trabalho e de estudo para todo mundo. Mudar a cultura institucional. Nesse sentido, o trabalho dos últimos meses dentro da Pró-Reitoria foi tentar desenvolver estratégias para fazer com que a gente consiga essa melhoria em termos de ambiente de trabalho. Estamos para aprovar em definitivo agora em dezembro o sistema de acolhimento e contra assédio na universidade, que a gente vai chamar de SUA. Numa primeira fase, é voltado para as questões de gênero e de mulheres, mas em seguida a gente vai aprovar um protocolo similar para as questões de pretos e pardos, e assim a gente vai ocupando as outras áreas da diretoria e de interesse da pró-reitoria”.

Afirmou que o SUA “demanda não só ter funcionários na pró-reitoria para receber denúncias, receber questões que incomodam a comunidade, mas também [permite] fazer com que a gente tenha um sistema amplo na universidade para captar dados, a gente vai conseguir dizer em que pé estão as discussões desse tipo na universidade, mas também incidir com políticas específicas em determinadas áreas, em problemas específicos que forem acontecendo”.

Novembro também é mês da Memória Trans, lembra Gabrielle

Ao iniciar sua intervenção no debate, a professora Gabrielle Weber destacou a importância da participação dos sindicatos de docentes no evento. “A Adusp e o Andes, que é o sindicato nacional, têm a questão da presença das mulheres, a questão racial, a questão da diversidade sexual e de gênero [como] pautas muito importantes, e eu queria trazer uma reflexão que está sendo feita no sindicato há mais de uma década, e fica mais forte a cada congresso. É interessante essa mesa no mês da Consciência Negra, mas novembro não é apenas o mês da Consciência Negra: é o mês da Memória Trans”, assinalou a vice-presidenta da Adusp, observando que por uma coincidência o dia 20 de novembro, que é o Dia da Consciência Negra, é também a data “em que a comunidade trans honra os seus assassinados ao longo do último ano. E a coisa está bem feia”.

“A gente está passando por um momento em que as estratégias necropolíticas de aniquilação têm arrancado cada vez mais a humanidade de certos grupos de pessoas, isso com o intuito de garantir uma sobrevida de um sistema capitalista calcado no cis-heteropatriarcado branco. Isso na universidade tem um aspecto muito perverso, ainda mais nas ditas minorias, com acirramento do produtivismo e da sobrecarga docente. Quem aqui não está chegando ao final do ano exauste?”, questionou a docente.

“Converso com muitos professores e todo mundo está falando que está mais exauste que no ano anterior. Isso vai piorar nos grupos marginalizados. Quero dar uma noção de número. Pegando um pouco do que o Rogério colocou, é importante a gente ter noção do tamanho do problema que a gente tem na mão. O Censo de 2022 fala que 51,5% da população brasileira é feminina. Mas se a gente for olhar para o corpo docente da USP apenas 37,6% são pessoas que se identificam ou se autodeclaram mulheres, ou pessoas alinhadas ao feminino”, frisou.

Gabrielle continuou nessa linha, observando que essa porcentagem de presença feminina vai diminuindo conforme se avança na carreira. “Se a gente olha para o MS-3, 42% estão alinhados com o feminino; no MS-5, 38%; quando a gente chega na instância decisória, que é o MS-6, apenas 29%”. Ou seja: no trajeto entre professor(a) doutor(a) e professor(a) titular, a participação feminina cai de 42% para 29%. “Então isso é um problema sério, porque as mulheres não estão chegando nas instâncias decisórias da universidade”, pontuou.

“Quando a gente olha para a questão racial, de novo pelo Censo de 2022, 56,3% da população brasileira são PPI. Mas, se a gente for olhar para o corpo docente, [são] apenas 2,7%. Quando a gente olha nessa divisão dos estágios, [encontramos] 3,5% no MS-3; 2,8% no MS-5; e apenas 1% no MS-6. Não temos professores titulares negros, isso é um problema”, enfatizou a vice-presidenta da Adusp.

No corpo discente, ponderou, a situação é melhor na medida em que já se começam a notar os efeitos da política de cotas. “A gente está com 22,7% do corpo discente da graduação sendo PPI, o que se a gente for olhar os dez anos em que sou docente na USP é uma melhora absurda, mas ainda está longe de chegar na proporção na população brasileira”. Quanto se olha para a questão da docência, adverte ela, descobre-se outra implicação grave. “Uma coisa que a gente vê com nosses alunes negres é a falta de referência. Que adianta eu, como uma professora branca, vir falar de negritude? Óbvio, é importante que eu fale, que eu critique a minha branquitude, mas eu não vou inspirar ume alune negre a ocupar esse espaço. Então é importante a presença de professories negres”.

O ENEM divulgou que em 2023 o percentual de aplicantes PPI foi de apenas 44,3%, o que a seu ver reflete um problema na tentativa de ingresso na universidade. “Se a gente quer mudar a situação, precisa atuar nas escolas públicas, que ainda concentram a maior parcela da população PPI, para que essas crianças almejem entrar na universidade”, diz Gabrielle.

“Quando venho para a questão LGBT, nem dados oficiais a gente tem. A gente depende de dados de pesquisa [científica], de dados de organizações não governamentais. Temos dados do artigo do [Giancarlo] Spizirri de 2022 que afirma que 12% da população brasileira é LGBT e 1,9% é trans, para a gente ter uma noção de ordem de grandeza”, explica. “Por causa do 20 de novembro, saiu uma atualização do mapa de assassinatos de pessoas trans do TGEU, que é uma organização internacional que conta com apoio de grupos brasileiros [como a Rede Trans Brasil]. Foram contabilizados [pelo menos] 350 assassinatos de pessoas trans no mundo, e 30% desses assassinatos ocorreram no Brasil, o que dá o posto de país que mais mata pessoas trans no mundo pelo décimo-sétimo ano [consecutivo]. Importante fazer um recorte interseccional, porque 94% dessas vítimas eram transfemininas [ou seja, mulheres trans ou travestis], 93% negras e 46% profissionais do sexo”.

Ela coordenou uma pesquisa, juntamente com a professora Fernanda Staniscuaski, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), segundo a qual 37% da população LGBT na universidade acusam ter sofrido LGBTfobia, e com pessoas trans a chance de sofrer LGBTfobia é duas vezes maior; 19% das pessoas pesquisadas consideram abandonar a universidade. “O que a gente vê, e aqui entra muito o papel da PRIP, é que medidas de combate consideradas efetivas diminuíram em uma vez e meia a chance de sofrer LGBTfobia, mas a presença de medidas inefetivas [a] aumenta em uma vez e meia. Então não basta ter medidas de combate à LGBTfobia, elas precisam ser efetivas”, ressaltou.

“Quando a gente especializa para a questão trans na USP, dados que Silvana e eu colhemos ao longo de 2022 e 2023 [como parte do Projeto Corpas Trans na USP], a gente vê que 0,15% do corpo discente de graduação é trans, estamos longe dos 2%. Quando olha para o corpo de funcionáries, 0,02%; e o corpo docente, 100% do corpo docente [trans] da USP está nesta sala”, frisou. “Setenta por cento da nossa amostra acusou sofrer transfobia, vai desde o desrespeito aos nomes e pronomes à violência psicológica, passando pela falta de referências”.

Gabrielle encerrou sua manifestação abordando a questão da saúde mental e especificamente de suicídios na população trans. “Quero deixar números para vocês. Na população em geral a ideação suicida é de 11,3%, e a tentativa 1,9%. Na população trans em escala mundial a ideação está em 46%, e tentativa 14%. Quando a gente olha para a situação na USP, a taxa de ideação suicida está em 80%, e a taxa de tentativa em 36%. Sofrer transfobia aumenta a chance de uma pessoa trans idear e tentar o suicídio, enquanto as medidas antiLGBTfobia têm um efeito de dirimir essa situação. Então se a gente quer transformar a USP num ambiente acolhedor à diversidade, em que pessoas diversas seja por questões raciais, de gênero ou de sexualidade, se sintam à vontade para trabalhar, pesquisar e construir uma vida, a gente tem que olhar com cuidado para esses números. Porque, para a diversidade, este ambiente não está nada acolhedor”.

Estado de São Paulo tem mais de 3 milhões de pessoas com deficiência

Ignácio Velasco, professor da Faculdade de Direito (FD), ex-diretor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) e desde 2023 assessor da Secretaria Estadual da Pessoa com Deficiência, abordou as questões específicas desse contingente populacional. “A diversidade é inerente à sociedade, nós precisamos incluir todas essas pessoas, independentemente das suas opções etc., no âmbito social”, disse ele. A pasta que assessora, afirmou, tem buscado a colaboração das universidades e seu “potencial transformador” tanto na formulação de políticas públicas como para desenvolver tecnologias assistivas.

“No último censo, em 2022, a população de pessoas com deficiência [em São Paulo] é de aproximadamente 3 milhões e 400 mil pessoas. Isso corresponde a 8% da população [paulista] e eu costumo dizer que é um Uruguai inteiro de pessoas com deficiência dentro do estado de São Paulo. Então estamos falando de um grande universo de pessoas e, eu diria, muitas vezes invisível. Por diversas razões. São pessoas que precisam mesmo de políticas públicas, da tecnologia assistiva, para serem incluídas na nossa sociedade”.

De acordo com Poveda, os deficientes visuais — que não são vistos pela população em geral porque preferem permanecer em casa a circular pelas ruas da cidade — são o maior contingente dentre as pessoas com deficiência: 40%, o que inclui pessoas cegas e aquelas com visão reduzida. “A inclusão esbarra nas barreiras. Logo nos vem à cabeça a questão das barreiras físicas. Perfeito: precisamos ter rampas para cadeirantes, elevadores etc. É um esforço que a universidade está fazendo. Mas temos também barreiras econômicas e barreiras atitudinais”, observou.

Citou, como exemplo de barreiras econômicas, o alto custo de próteses para pessoas amputadas. “As pessoas que não têm condições acabam não tendo acesso à tecnologia”. Citou um projeto de pesquisa das três universidades estaduais, com financiamento da Fapesp, para desenvolver tecnologia assistiva. “Mas a barreira mais difícil é a barreira atitudinal, que diz respeito muitas vezes ao preconceito, à maneira como as pessoas olham para a deficiência”.

“Todos somos trabalhadores, inclusive o corpo docente”, diz Teresa Teles

Teresa Teles, funcionária da FFLCH e coordenadora executiva do Diversitas, chamou a atenção para a necessidade de democratização dos cargos de coordenação e chefia da universidade, aos quais somente docentes têm acesso, e denunciou a ocorrência sistemática de assédio moral na instituição. “Infelizmente eu vi muitos colegas meus adoecerem, por sofrerem assédio da parte de docentes, chefias e coordenações, em espaços desta escola. Penso que todos nós somos trabalhadores, inclusive o corpo docente”, disse ela, recebendo aplausos do público e da mesa. “Todos somos trabalhadores da educação. Chefias, coordenadores, diretores não são patrões. A gente precisa trabalhar ‘com’, e não ‘para’”, sugeriu.

“Sou uma mulher negra, já passei por muitas situações de racismo que hoje identifico que eram situações racistas. E o assédio a mesma coisa. Muitas vezes a pessoa não percebe que está sendo assediada e tem receio de denunciar, ou mesmo falar sobre. Mas não dá mais para fingir que essas situações não acontecem, e deixar por isso mesmo. Essa é uma responsabilidade coletiva. No Diversitas temos o NuJur Diverso, Núcleo de Justiça Restaurativa, Diversidade e Saberes Orais. Teremos no próximo GT a Carla Boin, que é a idealizadora do NuJur”.

Teresa também informou que o Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades, idealizado pelos pesquisadores do Diversitas, adota ações afirmativas para pessoas autodeclaradas negras, indígenas, pessoas trans, pessoas com deficiências, refugiadas e apátridas, desde 2019. “A cada ano nós alternamos a reserva de vagas: num ano é 50%, no ano seguinte é 80%, então a gente tem muito orgulho de fazer uma política afirmativa efetiva, que entende a importância de diversificar o ambiente acadêmico de fato”.

Mas, questionou ela, para além do discurso da importância das ações afirmativas, “na prática, até que ponto docentes, discentes e servidores estão preparades para acolher de formas que não reproduzam políticas racistas?” Para além da política de acesso, “como garantir permanência de forma que a experiência na academia não seja adoecedora e violenta?” São muitos os desafios que precisam ser colocados e discutidos, lembrou.

Isabelle Pantoja e Camila Santana falaram do PAECO. Isabelle apresentou os resultados de uma pesquisa sobre os efeitos da política de reserva de vagas adotada entre 2019 e 2023. Mencionou de passagem o Inclusp (2007) e o complementar Pasusp (2009) como ações afirmativas anteriormente implantadas e substituídas, em 2019, pela atual política de cotas. Graças ao uso de modelos estatísticos aplicados aos resultados da Fuvest, que considera as chances de aprovação no vestibular como função de sete diferentes fatores, a pesquisa revelou que houve aumento gradativo dessas chances tanto para candidatos oriundos de escolas públicas como para candidatos autodeclarados PPI. Camila apresentou a cartilha destinada a calouros(as) e outros materiais de difusão elaborados pelo PAECO. Os principais canais de difusão de conteúdos do programa são o Instagram e o Spotfy, por onde circula o podcast “Trajetórias Afirmativas”, que teve dez episódios produzidos em 2024.

“141 docentes negros e 4 indígenas, em 6.219. Onde está a diversidade na USP?”

Silvana Nascimento encerrou a mesa de abertura assinalando que a diversidade deve ser pensada como aquilo que define as relações humanas. “Quanto mais nos relacionamos e tentamos conviver coletivamente, mais produzimos diferenças, e essas diferenças são constitutivas do humano. A grande questão é como fazer com que essas diferenças que historicamente se tornaram desigualdades étnicorraciais, de gênero, de classe, de sexualidade, geração, capacidade, sejam potencializadas em suas singularidades e sejam reconhecidas em suas complexidades”, observou. “E a universidade pública é um desses espaços onde todas essas diferenças se interconectam. Sabemos que são necessárias políticas em diferentes frentes para que essas diferenças não reforcem ainda mais desigualdades e produzam violências”.

Para que essas políticas sejam concretizadas, argumentou, é fundamental a presença, na USP, de docentes e de outros profissionais de várias áreas que possam fazer frente a tais problemáticas. “Assim, a produção de conhecimento científico pode vir acompanhada de projetos de transformação social, de projetos de futuro. Creio que é necessário afirmar o óbvio, a Gabrielle já mostrou os números: em pleno século 21 a baixíssima quantidade de professores negros na USP, em 2023 éramos apenas 141 em 6.219 docentes na USP. Não basta se afirmar antirracista, mas colaborar na efetiva implantação de políticas de ações afirmativas também para professores negros e negras. A gente sabe que há um crescimento exponencial [do número] de estudantes negros e negras na universidade, mas não há representatividade negra na docência, e isso produz um descompasso muito grande em diferentes espaços de ensino, pesquisa, extensão universitárias”, lamentou.

“Em relação a pessoas trans, duas docentes. Em relação a pessoas surdas, duas professoras, em meio a mais de 6 mil ouvintes. Quatro docentes indígenas. Proporção de docentes mulheres cis, 37% como Gabi falou. Onde está a diversidade na USP?”, questionou e vice-diretore da FFLCH. “Quais têm sido nossas estratégias para respeitar as diversidades, tendo em vista que estas na verdade nos constituem? Quais os desafios reais para as questões que envolvem raça, etnia, gênero, sexualidade, capacidade sejam ações transversais e cotidianas às ações docentes e não docentes? Não significa tornar-se especialista no tema, mas colaborar, dentro e fora da universidade, de forma ética, democrática, interseccional, para minimizar as desigualdades que também nos constituem”.

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