Uma nova unidade de ensino da USP, a Faculdade de Medicina de Bauru (“FMBRU”), teria seu projeto de criação apreciado em reunião extraordinária do Conselho Universitário (Co) que deveria acontecer na próxima terça-feira (10/10). No entanto, nesta quinta-feira (5/10), a Secretaria Geral da Reitoria encaminhou e-mail avisando que o projeto foi retirado de pauta e que a reunião do Co de 10/10 foi adiada, por enquanto sine die.

“Em nome do Magnífico Reitor, Prof. Dr. Carlos Gilberto Carlotti Junior, informamos que, tendo em vista o pedido da Presidente da Comissão de Orçamento e Patrimônio (COP) de retirada do item 1 – e consequentemente, do item 2 – da pauta da 1.028ª Sessão extraordinária do Conselho Universitário, fica cancelada a convocação da reunião prevista para o dia 10 de outubro de 2023”, comunicou a secretária geral, Maria Helena Cury Gallotinni, em mensagem aos(às) integrantes do Co. “Oportunamente informaremos a nova data da reunião que tratará desta matéria”.

O projeto da nova faculdade foi aprovado, inicialmente, pela Congregação da Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB), unidade que abriga, desde 2018, o curso de Medicina de Bauru. Criado às pressas em 2017, o curso foi locado na FOB porque a gestão M.A. Zago-V. Agopyan não possuía maioria qualificada no Co, necessária para aprovar a criação de uma unidade, e porque as respectivas despesas seriam contraditórias com o discurso da Reitoria de contenção de gastos.

“Ele é muito ‘pé no chão’, com número de professores e orçamento reduzidos, na comparação com as outras duas faculdades da USP (em Ribeirão Preto e São Paulo), e com um modelo político pedagógico totalmente inovador”, declarou sobre o projeto a diretora da FOB, Marília Afonso Rabelo Buzalaff, conforme reportagem do portal jornalístico JCNet.

A diretora da FOB alega que a transferência do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais de Bauru (HRAC) à Secretaria de Estado de Saúde (SES) fará com que a nova unidade seja criada sem custos adicionais. “Com a mudança, a USP teve uma economia de recursos, que serão usados para criar a Faculdade de Medicina. Ou seja, o projeto não onera a universidade. Pelo contrário”, disse ela ao JCNet.

Esse raciocínio é detalhado no documento “Esclarecimentos da Direção da FOB sobre a criação da Faculdade de Medicina de Bauru”, assinado por Marília e por seu vice (e ex-diretor) Carlos Ferreira dos Santos, e distribuído por e-mail nesta quinta-feira (5/10).

“É importante destacar a existência de uma economia imediata, independente do desligamento dos servidores, pois a USP deixa de arcar com todas as despesas de custeio do HRAC (R$ 13 milhões anuais), além de haver uma economia projetada para os anos seguintes em relação à folha de pagamento dos servidores do HRAC, já que serão feitas pela SES as reposições dos servidores que se desligarem do HRAC”, diz o texto.

“Quando se considera o planejamento da evolução dos custos associados à criação da FMBRU e o resultado esperado da desoneração da USP pela vinculação do HRAC à SES, estima-se que em 15 anos seja atingido o equilíbrio financeiro e daí em diante haja superávit para a universidade. Portanto, a criação da FMBRU de forma alguma onera a USP. Na verdade, o projeto é superavitário!”, proclama a direção da FOB.

HRAC foi sacrificado, abandonado ao governo estadual, para viabilizar a nova faculdade

Tais declarações sintetizam, assim, a operação iniciada em 2014 pelo reitor M.A. Zago (hoje presidente da Fapesp) e levada a cabo pelo atual reitor Carlotti Jr.: a USP literalmente trocou o HRAC ─ equipamento público ligado ao SUS que ao longo de décadas atendeu gratuitamente mais de 100 mil pacientes do Brasil e da América Latina, na sua maioria portadores de fissura labiopalatina ─ por uma Faculdade de Medicina nova e “enxuta”. Minimizando e desprezando, assim, o papel histórico do HRAC como unidade promotora de ensino, pesquisa e extensão. Tudo isso para a Reitoria livrar-se de “despesas de custeio” de R$ 13 milhões anuais segundo a direção da FOB, montante absolutamente irrisório frente ao orçamento anual da USP.

Nesse percurso, como agravante, a Reitoria da USP coagiu mais de 500 funcionárias(os) a assinarem um “termo de anuência” para que se obriguem a receber ordens da “organização social de saúde” Fundação de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Assistência do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-FMRP, ou Faepa, a quem o governo estadual delegou a gestão do novo Hospital de Clínicas de Bauru (HCB), que funciona nas instalações do Prédio 2 do HRAC. Para tanto, foram cometidas irregularidades e ilegalidades de toda sorte. A força de trabalho altamente qualificada do HRAC foi posta a serviço da Faepa, mas a USP continuará pagando seus salários, sem que a fundação privada desembolse qualquer valor em contrapartida.

Na reunião de 28/9 do Conselho Deliberativo do HRAC, após citar laconicamente a reunião de 10/10 do Co (agora adiada pelo reitor), o vice-diretor da FOB foi questionado por Ricardo Pimentel Nogueira, ex-diretor do Sintusp e representante dos funcionários no colegiado, acerca de qual será o critério de recrutamento de funcionários(as) para a futura FMBRU.

“Sobre a movimentação de servidores, posso dizer que isso será orquestrado [sic] pela Reitoria e pelo DRH [Departamento de Recursos Humanos]. Os critérios são esses. O que eu posso dizer também é que haverá algum compartilhamento de atividades com a FOB, por exemplo na parte administrativa. Isso está no projeto”, respondeu Ferreira dos Santos. “Não tenho detalhes sobre como será feita essa absorção. O que é fato é: uma nova unidade precisa de servidores”.

Quando diretor da FOB, Ferreira dos Santos protagonizou uma disputa de poder com os docentes de Ribeirão Preto que idealizaram e montaram o curso de Medicina de Bauru. Uma das razões apontadas era a ligação, à época, entre o diretor e a “organização social de saúde” Fundação para o Desenvolvimento Médico e Hospitalar (Famesp), pois Ferreira dos Santos integrava o Conselho de Administração da Famesp. Posteriormente, ele se desligou da fundação. Mas a Famesp está presente no projeto da FMBRU, como se verá adiante.

Projeto sugere compartilhar gestão do corpo docente com a Faepa

O Informativo Adusp Online obteve uma cópia do projeto que delineia a FMBRU. Ele prevê um corpo docente com 105 profissionais, dos quais, porém, somente 21 (20%) trabalharão em Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP) e os demais em Regime de Turno Completo (RTC), a pretexto de que “a realidade atual da carreira universitária é bem diferente daquela observada nos anos de criação dos demais cursos médicos da USP” (p. 73). Como o curso da FOB já conta com 20 docentes efetivos(as), será necessária a contratação de outros 85 docentes efetivos, que, no entando, será escalonada em quatorze anos, sendo prevista a última contratação em 2037 (vide Tabela 22, nas p. 88 e 89). Até 2028, por exemplo, serão contratados apenas 41 docentes.

Mais graves são as ilegalidades embutidas no modelo de contratação proposto para os docentes que trabalharão em RTC: “Em comum acordo com a Gestão do HCB, uma estratégia de fixação de novos docentes é a contratação do docente RTC USP como empregado do HCB em regime CLT [Consolidação das Leis do Trabalho], isso promove [sic] que o mesmo profissional dedique sua carga funcional somada de 36 a 40 horas dentro do complexo FMBRU/HCB, tendo em vista a qualificação que um docente tem para auxiliar na estruturação [d]os serviços do HCB assim como a facilitação da inserção dos estudantes de Medicina no dia a dia assistencial do HCB” (p. 74).

Quando o projeto menciona a frase “em comum acordo com a Gestão do HCB”, o subtexto é “em comum acordo com a Faepa”, a entidade privada, mantida por docentes da FMRP, que no governo Rodrigo Garcia (PSDB) foi contratada pela SES, sem licitação, por R$ 309 milhões, para gerir o HCB por cinco anos, de 1º de agosto de 2022 a igual data de agosto de 2027.

O que se deduz do documento, portanto, é que a gestão da maior parcela do corpo docente da FMBRU (80% dele, segundo o projeto aprovado na FOB) será compartilhada com a Faepa, entidade que já foi dirigida pelo reitor Carlotti Jr., quando diretor da FMRP. E que, além disso, o projeto prevê que esses docentes em RTC sejam contratados pela CLT, quebrando assim a isonomia e desferindo mais um ataque à carreira docente na universidade.

Da mesma forma, o projeto prevê “integração efetiva” mais com organizações privadas do que com organizações públicas, a saber “com os parceiros institucionais da Faculdade, particularmente no que tange às atividades de ensino e pesquisa como por exemplo Prefeitura Municipal, fundações de apoio gestoras dos equipamentos municipais e estaduais (Famesp e Sorri), bem como a fundação gestora do HCB (Faepa)” (p. 59). Portanto, de modo espantoso, antes mesmo que a FMBRU seja oficialmente criada e passe a existir, o projeto já atribui a três fundações privadas ditas “de apoio” a condição de “parceiros institucionais” da nova unidade da USP.

Por fim, o projeto permite vislumbrar o grau de precarização vivenciado no atual curso de Medicina de Bauru, apesar dos autoelogios presentes no documento, ao descrever as características do atual corpo docente: “Atualmente o curso conta com 20 docentes efetivos, além de seis docentes de outras unidades atuando diretamente e consideravelmente [sic] no curso […] e também 19 professores contratados em regime temporário”. Portanto, tais docentes precarizado(a)s, cujo salário é de cerca de R$ 1.000 mensais, representam atualmente 40% do quadro docente do curso de Bauru.

EXPRESSO ADUSP


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