8M
Em documento entregue à PRIP, movimento “USP sem assédio” reivindica centro de referência e política institucional contra assédio moral e sexual
Carta foi levada por representantes da Adusp, Sintusp, DCE-Livre, Rede Não Cala! e APGs da capital e de Ribeirão Preto à Reitoria após seminário sobre o tema realizado na Cidade Universitária. “As melhores universidades do mundo possuem programas de enfrentamento às violências, com políticas amplas e articuladas para combatê-las. Por que até hoje não foram implantados na Universidade de São Paulo?”, pergunta o documento
Um grupo de professoras, alunas e servidoras da USP entregou no último dia 31/3 à pró-reitora adjunta de Inclusão e Pertencimento, Miriam Debieux Rosa, e ao professor Felipe Tarábola, da equipe da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP), a carta Vozes Que Não Se Calam Contra o Assédio na USP, documento que elenca algumas das discussões realizadas no seminário de mesmo nome, ocorrido naquele dia no auditório Adma Jafet, do Instituto de Física da USP.
O seminário, organizado pela Adusp, Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp), DCE-Livre “Alexandre Vannucchi Leme”, Rede Não Cala! e associações de pós-graduando(a)s da capital e de Ribeirão Preto, encerrou as atividades vinculadas ao 8M.
“Esta universidade ainda carece de instrumentos e protocolos para receber as denúncias de docentes, de discentes e de funcionárias”, disse na abertura do encontro a professora Annie Schmaltz Hsiou, vice-presidenta da Adusp. “Um dos objetivos do seminário é que possamos ser escutadas, que a universidade de fato tenha instrumentos institucionais e que as coisas não fiquem pulverizadas nas unidades.”
“O assédio sexual está presente na comunidade uspiana de maneira generalizada”, registra a carta. “Por mais que grupos de docentes, pesquisadoras, alunas e funcionárias se manifestem recorrentemente por várias vias, não há atendimento imediato nem encaminhamento adequado dos casos. Vale enfatizar que essas agressões não podem seguir o mesmo protocolo de sindicâncias e processos administrativos comuns, que acabam por expor as vítimas e proteger os agressores.”
Apesar dos diagnósticos feitos, prossegue o documento, “ainda não recebemos respostas suficientes para atender às necessidades que o problema nos impõe”. “As melhores universidades do mundo possuem programas de enfrentamento às violências, com políticas amplas e articuladas para combatê-las. Por que até hoje não foram implantados na Universidade de São Paulo?”
O texto, assinado por todas as entidades que organizaram o seminário, ressalta que “é responsabilidade da administração da USP garantir espaços seguros, promovendo debates, inclusões, acolhimento às vítimas e, se for necessário, punições aos infratores”. É necessário e urgente, demandam as entidades, “construir cartilhas de letramento contra os assédios que apontem as leis que asseguram o direito de reparação às vítimas e os fluxos institucionais para garantia da apuração das situações”.
Alunas desistem da carreira, assediadores seguem nos cargos
A necessidade de que a USP constitua um centro de referência para acolhimento e encaminhamento das vítimas de assédio foi uma reivindicação presente em muitas falas do seminário. Uma das palestrantes, a professora Heloisa Buarque, docente do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e uma das coordenadoras da Rede Não Cala!, lembrou que o projeto de um centro, concebido pela rede, foi entregue ao ex-reitor M.A. Zago ainda em 2017, sem que até agora nenhuma medida tenha sido tomada para sua implantação.
Seria “um lugar ao qual se pudesse recorrer antes da pessoa entrar em desespero”, disse Heloisa, citando o caso de uma aluna que procurou ajuda por sofrer assédio constante de seu orientador. “A aluna estava desesperada, perdendo o mestrado. Fizemos um acordo informal com a coordenação da pós-graduação, ela defendeu com outra pessoa e desistiu da carreira acadêmica.”
O antigo orientador era um professor “muito poderoso na área”, descreveu, o que conforma outra característica desse tipo de assédio: as alunas não seguem na carreira, enquanto o professor assediador permanece no cargo e fazendo vítimas.
Na avaliação de Heloisa, os professores “não são todos [assediadores], não são muitos, não são a maioria, mas os assediadores são recorrentes, insistentes”. “O resultado do assédio sexual tem sido o adoecimento, mas tem sido principalmente a desistência da vida acadêmica, e é assim que algumas áreas se garantem como extremamente masculinas”, apontou.
A Rede Não Cala!, relatou a professora, tem trabalhado com a ideia de um tripé de ações que propiciem saídas institucionais para a realidade do assédio. O primeiro ponto é exatamente como acolher e atender as vítimas, providenciando eventualmente o encaminhamento para serviços de atendimento psicológico ou médico, se necessário.
Em segundo lugar, é preciso que haja processos de investigação e responsabilização das pessoas. Na atualidade, considera, a maioria das sindicâncias e processos administrativos na universidade não protege as vítimas.
“E o terceiro ponto é aquilo que estamos fazendo aqui: reflexão, prevenção e educação para o tema”, disse, referindo-se à realização do seminário. “O difícil da prevenção é a gente chegar em todo mundo. É importante que os professores façam sensibilização sobre gênero, classe e raça.”
Desigualdades são atravessadas por gênero, raça, classe e hierarquia
Heloisa Buarque lembrou que “assédio é uma palavra relativamente nova, que circula com mais frequência no nosso mundo nos últimos dez anos”. “Ela fala especialmente de situações que eram consideradas normais, naturais, parte da rotina da universidade. Seja o assédio sexual, seja o moral, são práticas que estão entranhadas no cotidiano e que não eram necessariamente percebidas como violência ou agressão da forma como percebemos hoje”, disse.
Dados da pesquisa Interações USP mostram que 37% do(a)s aluno(a)s afirmaram ter sofrido alguma violência na USP; 7% relataram atos de violência sexual de vários tipos; 11% das mulheres, 2% dos homens e 74% das pessoas com outras identidades de gênero declararam ter sofrido algum tipo de abuso sexual; 3,6% sofreram atos que poderiam ser classificados como estupro.
“Minha sensação é de que, se a gente fizer uma pesquisa detalhada sobre assédio moral, os números serão bem piores. Essa é uma sensação que vem da experiência de atender desde 2015 pessoas que se sentiram agredidas na universidade, seja na Rede Não Cala!, seja na comissão de Direitos Humanos da FFLCH”, afirmou a docente.
De acordo com Heloisa, alguns pontos aparecem com frequência nos relatos das vítimas. Um deles se refere à hierarquia: quase sempre há uma relação de poder desigual, seja de professor-aluna, chefe-funcionária, orientador-orientanda ou mesmo aluno de pós-aluna de graduação.
A professora chama a atenção para o fato de que não é possível “cobrar” a vítima ou achar que ela pode facilmente dizer “não” e assim acabar com o assédio sexual que sofre. “Ela está numa posição de desigualdade de poder, sabe que se falar esse ‘não’ pode ouvir coisas como: ‘ah, você não vai defender’, ‘seu trabalho está uma m…’.” Na sequência, o assédio moral pode acarretar desqualificação e humilhação em público, com negativas de participação em congressos ou publicações etc.
“Temos um cruzamento de hierarquias, e se não houver treinamento sobre desigualdades e hierarquias sociais o protocolo [de denúncia e procedimento] pode ficar vazio”, alerta. As desigualdades são atravessadas por gênero, classe e raça, e também pela hierarquia formal da própria universidade, com as diferenças nos cargos de professor titular, livre-docente, doutor etc.
“Outra hierarquia da qual se fala pouco é a dos nomes e das estrelas, ou os ‘nomões’, aqueles que têm verba de pesquisa e barganham o assédio por verba de pesquisa etc.”, lembrou.
De acordo com Heloisa Buarque, as denúncias sempre aparecem, ainda que as estruturas da universidade tenham dificuldade de perceber isso. Muitas vezes, considera, as pessoas não procuram as comissões de Direitos Humanos, mesmo nas unidades que a possuem, por fatores como não confiar na universidade ou temer retaliações.
A professora citou dois casos recentes em que docentes assediadores foram demitidos pela USP: o de Cláudio Lima de Aguiar, da Escola Superior de Agricultura ‘Luiz de Queiroz” (Esalq), e o de Eduardo Gorab, do Instituto de Biociências (IB).
Os casos chegam a demissão quando há denúncias coletivas e quando se consegue provar que são situações de um assediador em série. Nas sindicâncias e nos processos administrativos na USP, têm sido usados como prova elementos como conversas por WhatsApp, e-mails e testemunhos de outras pessoas. “Mas isso tudo sempre significou longos processos, que demoram anos”, alertou.
A professora citou várias universidades públicas do país que têm adotado diferentes medidas para combater o assédio, como criação de protocolos e normativas. Em março, reportagem da Folha de S. Paulo abordou o tema. “Há iniciativas, há possibilidades de saída. São complexas, mas começamos a ver o resultado dessas políticas”, afirmou.
Assédio está ligado às estruturas históricas do país
A segunda palestrante do seminário, Carolina Bezerra-Perez, docente da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e pós-doutoranda na FFLCH, relacionou sua trajetória na USP – na qual fez graduação, mestrado e doutorado – com as questões da luta contra o assédio nos espaços em que atuou. “Fui moradora do Crusp [Conjunto Residencial da USP], cheguei aos 19 anos e saí aos 27, grávida do meu primeiro filho. Uma das questões, quando saí do Crusp, é que não queria ter uma criança ali”, relatou.
Carolina lembrou que durante a gestão da qual participou na Associação dos Moradores do Crusp (Amorcrusp) houve toda uma luta para a criação de espaços adequados para receber as crianças das alunas mães. Também nesse período, entre o final dos anos 1990 e início dos anos 2000, ocorreram mobilizações importantes para promover outras mudanças, como o fim da chamada “festa da porca e do parafuso”.
A festa era promovida pelos estudantes da Escola Politécnica, com alunado predominantemente masculino, que convidavam alunas de cursos como Letras, Pedagogia e Enfermagem, por exemplo. Na entrada, os homens recebiam um parafuso e as mulheres recebiam uma porca. Quando as peças “encaixavam”, o “casal” era levado ao palco e recebia “prêmios” como um vale para uma noite num motel.
“Temos que pensar o pensar o quanto esses assédios e a questão da violência de gênero estão intimamente relacionados ao processo de fundação da USP e ao projeto civilizatório que a USP implementou, com a ideia de ser a formadora das elites dirigentes do país”, disse. “Não dá para falar de assédio se não falarmos da estrutura histórica do Brasil e dos corpos que a sociedade concebeu como corpos pensantes, que poderiam produzir conhecimento, e os corpos que iriam simplesmente obedecer. Há os corpos destacados predominantemente para o trabalho braçal e outros, para o trabalho intelectual.”
Nesse contexto, prosseguiu, “é preciso dizer que a USP é uma universidade embranquecida e racista”. “É difícil dizer isso, mas é muito importante.”
A professora ocupou entre 2015 e 2016 o cargo de diretora de Ações Afirmativas da UFJF e relatou que não foi a partir de sua formação na USP que pôde acionar determinados conhecimentos para acolher as estudantes que lhe chegavam com denúncias de assédio sexual ou violência de gênero. Para acolhê-las, foi necessário partir “de um outro olhar e de uma outra formação que fui buscar e ainda estou buscando, porque não foi oferecida a mim quando estudei nesta universidade”.
Na época, a UFJF veiculou a campanha “A universidade é pública, o meu corpo não”, inspirada em campanha semelhante do Metrô de São Paulo.
Na sua avaliação, é preciso incluir em todos os cursos das universidades disciplinas sobre temas como direitos humanos, relações de gênero e sexualidade e relações étnico-raciais.
Reiterando a reflexão de Heloisa Buarque, Carolina afirmou que “um único docente ao longo dos anos tem o poder de impactar a carreira de várias mulheres, porque isso se torna uma prática naturalizada”. Para piorar, em alguns casos “esse assédio moral continua depois que as alunas se formam, porque há redes de poder de famílias que não estão relacionadas só à universidade, mas são as redes econômicas dos locais de trabalho”.
Entre os problemas recorrentes quando se fala de assédio, há o fato de que a mulher que denuncia está sujeita a não ter seu depoimento reconhecido: “a credibilidade nunca é dada à palavra da mulher”, aponta. A impunidade é outro fator complicador. Carolina relatou um caso ocorrido na Faculdade de Educação Física da UFJF, em que dois homens acusados de assédio contra seis trabalhadoras enviaram mais tarde a elas a foto do churrasco que estavam fazendo para comemorar o fato de não terem sido punidos, enquanto as trabalhadoras foram removidas de unidade.
As pessoas que acolhem e apoiam as vítimas também podem ser afetadas e sofrer assédio moral – por exemplo, quando precisam pedir uma licença numa reunião de departamento e não são atendidas ou quando retornam de licença-maternidade e recebem no retorno os piores horários de aulas. “Precisamos cuidar de quem cuida”, afirmou.
O assédio sistemático, sexual e moral, se dá inclusive pelo fato da vítima ter que contar e recontar muitas vezes a sua história para diversas pessoas e em diversos espaços. “É claro”, disse Carolina, “que algumas passagens não vão ser iguais ao primeiro relato. Isso é ter que obrigar a pessoa a reviver tudo aquilo que ela já falou. O impacto emocional afeta também a qualidade do relato e a forma como ele é exposto.”
A professora considera que, sem a organização e as articulações de entidades e movimentos, não é possível transformar a realidade – “e a Rede Não Cala! é um exemplo muito importante disso”, afirmou.
Funcionário da Feusp foi demitido depois de quinze anos de assédio
O seminário contou ainda com intervenções de docentes, funcionárias e alunas de graduação e pós-graduação. A professora Sylvia Garcia, docente da FFLCH, lembrou que a Rede Não Cala! foi criada em 2015, no contexto e um debate sobre os trotes nas universidades públicas e a partir de uma situação particular na Faculdade de Medicina da USP (FMUSP).
“A Rede tem sido esse lugar de se juntar, de construir vínculos e articular forçar em nossas semelhanças e nossas diferenças”, disse.
A presidenta da Adusp, professora Michele Schultz, ressaltou que os documentos normativos da USP sobre questões disciplinares relativas especialmente aos e às estudantes ainda remontam à época da ditadura militar. “Precisamos avançar na construção de procedimentos e normativas que de fato tenham perspectiva não punitiva e de acolhimento”, defendeu.
Entre os temas relacionados especificamente às professoras, Michele lembrou que não podem ser ignoradas no processo de avaliação docente que a Reitoria vai implementar questões como a sobrecarga de trabalho às mulheres que ficaram responsáveis pelo cuidado de familiares durante a pandemia, às vezes inclusive tratando da alfabetização de filhos e filhas. “Temos que batalhar para termos uma política institucional que proteja as questões que se referem à maternidade”, afirmou.
O seminário teve também o relato de um caso que culminou na exoneração de um analista de sistemas da Faculdade de Educação (Feusp), demitido após um processo por importunação sexual contra uma estudante num ônibus no câmpus. O caso ocorreu em maio do ano passado, mas a exoneração só se deu em março deste ano.
O funcionário permaneceu um mês preso e depois retornou ao trabalho. O conhecimento da ocorrência, porém, fez com que fosse rompido o ciclo de silêncio em torno da sua conduta, e 14 servidoras formularam um dossiê reunindo mais 25 casos de assédio envolvendo esse agressor – os casos ocorriam desde 2008, ou seja, ao longo de quinze anos.
Todas essas ocorrências, entretanto, não foram levadas em conta na demissão, que considerou apenas a importunação sexual no ônibus.
A Secretaria de Mulheres do Sintusp e o Núcleo de Funcionárias da Feusp (NUFFE) têm demandado que a Procuradoria-Geral da USP se manifeste sobre a denúncia coletiva e que a universidade estabeleça protocolos específicos para casos como esse.
“No primeiro dia sem a presença do funcionário na faculdade, as trabalhadoras se reuniram para celebrar o ambiente livre de constrangimento à exposição ao agressor”, relata o Boletim Especial da Secretaria de Mulheres que narra todo o caso. A celebração teve canecas estampadas com os dizeres: “Só a luta muda a vida!”.
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