Defesa da Universidade
Encomendado a produtora comercial, novo vídeo institucional da USP é colagem de estereótipos
Um novo vídeo institucional da universidade, com 2 minutos e 20 segundos de duração e intitulado “A USP é de todos, a USP está em você!”, foi lançado em 8/2 pelo Canal USP. De acordo com mensagem enviada pela assessoria de imprensa aos docentes, ele foi “produzido pela Reitoria em parceria com a Escola de Comunicações e Artes (ECA), ‘aliando a expertise e a competência da pesquisa desenvolvida pela unidade nessa área’, conforme explica o vice-reitor” [Antonio Hernandes].
A mensagem informa ainda que o projeto foi coordenado pelo professor Arlindo Figueira, do curso de Publicidade e Propaganda da ECA, segundo quem a “grande motivação para a concepção do vídeo é mostrar como a USP está mais presente no dia a dia do que as pessoas imaginam, com uma linguagem simples e acessível para atingir todos os públicos”. O vice-reitor, por sua vez, destaca a proposta de “mostrar para população em geral a grandeza de nossa Universidade e como ela transforma a sociedade com a ciência e a arte que produz, com os alunos que forma na graduação e na pós-graduação e com as atividades de extensão que oferece”.
Porém, nem a expertise nem a competência de pesquisa da ECA são perceptíveis no vídeo, que se limita a exibir uma sequência de imagens estereotipadas — tais como as de grupos de estudantes em ambiente acadêmico, de pesquisadoras em laboratórios ou ainda de prédios de unidades da universidade e de outros locais dos campi de São Paulo, Ribeirão Preto e Piracicaba. Não é improvável que várias das pessoas retratadas sejam atrizes e atores profissionais.
O formato de publicidade comercial e o tempo exíguo de duração não favorecem os planos de “mostrar a grandeza” da USP — a não ser que esse conceito se refira às fachadas do Museu do Ipiranga (em reforma e fechado à visitação há anos) e de algumas poucas faculdades, ou ao monumento a Ramos de Azevedo na Cidade Universitária. Menos ainda se consegue mostrar como a universidade “transforma a sociedade com a ciência e a arte que produz” valendo-se de um texto frugal em forma de jingle, de uma jovem pintando um quadro ou de outra ensaiando passos de dança no vão da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU).
Por meio do jingle, o vídeo anuncia que a USP “está no suco que você toma”, bem como “no oceano profundo”, sem no entanto fornecer qualquer indicação mais concreta além das respectivas imagens — que sequer trazem legendas explicativas, como a de um laboratório de engenharia naval da Escola Politécnica (bastante utilizado, por sinal, por projetos privados).
Uma informação relevante prestada pela peça, a de que a universidade “quadruplica o número de estudantes negros e indígenas em dez anos”, aparece fora de contexto, sem merecer dados adicionais necessários. Por outro lado, anuncia-se que a USP “é das melhores do mundo”, no entanto a imagem correspondente é a mais óbvia possível: uma colagem de notícias sobre as posições atribuídas à universidade por diferentes rankings. Vai a reboque da narrativa nada confiável dos rankings, quando seria mais prudente, por exemplo, fornecer dados sobre a produção da USP que atestem que ela se situa entre as principais universidades do Brasil e da América Latina.
Roteiro foi precedido de “entrevistas com pessoas-chave da gestão”
A produção do vídeo foi encomendada, em 2019, a uma empresa de mídia audiovisual, incumbida de realizar “entrevistas com pessoas-chave da gestão da Universidade”, a partir das quais foi elaborado o roteiro. O Informativo Adusp solicitou à Reitoria o nome da empresa e o valor do contrato e está aguardando essas informações, que serão publicadas tão logo sejam encaminhadas.
“Assisti várias vezes para ver se tirava a impressão ruim que ele deixou de primeira. Mas a coisa só foi piorando”, relatou à reportagem o professor Marcos Bernardino, do curso de Gestão Ambiental da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) e membro do Conselho de Representantes da Adusp. “A começar da chamada — ‘A USP é de todos, a USP está em você!’, que já me remeteu automaticamente para ‘A USP, portanto, não é de todas, nem de todes’. E também associação direta com a segunda parte da chamada — ‘a USP está em você’, para o complemento óbvio: ‘mas você não está na USP’, nem estará tão cedo, enquanto o privilégio de entrada ainda for para os mais bem colocados no vestibular”.
Bernardino lamentou o fato de que as ciências humanas tenham sido preteridas no vídeo, que deixou de fora a maior unidade da USP, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH): “Nada de FFLCH, EACH, ação social, movimentos discentes, docentes. Muito Hospital das Clínicas (HC), muita Praça do Relógio, nada de Hospital Universitário (HU), nada de terceirizadas limpando tudo isso aí. Ou seja, a USP desse vídeo é só de alguns”.
“USP está longe de espelhar a sociedade brasileira e ser inclusiva”
“O vídeo é meramente publicitário, parece uma reprodução de diversas outras campanhas que falam de novos corpos, de integração de pessoas negras — a publicidade foi rápida em colocar isso em pauta. Mas a desigualdade e a violência persistem em níveis absurdos no Brasil. A USP melhorou, mas está muito longe de espelhar a sociedade brasileira, de ser mais inclusiva. O vídeo fica muito nisso: o pessoal dançando na FAU, imagens bonitas. O discurso da publicidade é enganoso”, declarou ao Informativo Adusp o professor Renato Levi, responsável pelas disciplinas de Documentários e de Telejornalismo da ECA.
Na sua opinião, a peça limita-se a “platitudes”, deixando de tocar nas questões-chave da universidade, “que foi deixada de lado como estrutura estratégica para a sociedade brasileira”. Embora docentes e servidores enfrentem crescentes dificuldades nas condições de trabalho, “o vídeo é só alegria, como bom vídeo publicitário: todo mundo feliz, trabalhando, produzindo. Tudo bem iluminado, bem coreografado”.
Apesar dessas considerações críticas, Levi vê como avanço o fato de um professor da ECA ter sido convidado a coordenar o projeto. “É muito complicado mostrar a universidade [num trabalho desse tipo], porque ela é muito desigual. Talvez seja uma tentativa da universidade de se colocar como importante para a sociedade num momento em que a ciência é desacreditada pela sociedade, pelos governos. O próprio governo do Estado faz jogo duplo: diz confiar na ciência, mas tenta cortar verbas”.
O docente avalia que a USP sempre foi “muito acanhada” na área de comunicação, e que deveria e poderia desenvolver esforços próprios no sentido de se comunicar e dialogar com a sociedade. “A TV USP acabou, virou um canal na Internet. A Rádio USP tem papel interessante, mas podia ser muito melhor”, exemplifica. “A USP não ocupa esses espaços”.
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