Conjuntura Nacional
Em artigo de “união nacional” publicado pela Folha de S. Paulo, ministra e ex-ministros descrevem cenário irreal de C&T
O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), antes Ministério da Ciência e da Tecnologia (MCT), “é peça fundamental para a democracia, o desenvolvimento econômico e o exercício pleno da cidadania no país”, e sua criação em 1985, durante o governo José Sarney, no contexto da (relativa) “redemocratização” do país, “expressa o encontro da democracia com o objetivo estratégico de promover o desenvolvimento econômico e social do Brasil com base na ciência e tecnologia nacionais”.
Essa suposta unanimidade é a premissa central de um estranho artigo intitulado “Ciência, tecnologia e inovação: um compromisso com o futuro do Brasil”, publicado pela Folha de S. Paulo no último dia 29 de março. A estranheza começa pelo rol de autores. Além da ministra Luciana Santos, o texto hiperotimista é assinado por doze ex-ministros daquela pasta que representam, em tese, posições antagônicas no espectro político-partidário nacional, e que exerceram o cargo em diferentes governos, caracterizados por orientações político-ideológicas profundamente distintas.
O artigo sustenta que, desde sua criação, “o ministério contribuiu decisivamente para a estruturação de um Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (SNCTI) robusto, capaz de viabilizar ambiciosos projetos de desenvolvimento por meio do conhecimento nacional, como a prospecção e exploração de petróleo em águas profundas, a viabilização de alternativas energéticas renováveis, a elevação da produtividade agrícola, a liderança global no setor da aviação regional, o domínio completo da tecnologia nuclear”.
Ainda segundo o texto: “A liberdade de pesquisa, o investimento em educação e a produção de conhecimento são elementos que sustentam uma sociedade democrática, inclusiva e crítica. Um país que investe em ciência, tecnologia e inovação (CT&I) investe em sua capacidade de produzir conhecimento autônomo, de tomar decisões informadas e de garantir um futuro mais justo para todos. Nesse contexto, a ciência e a tecnologia se tornam fundamentais para o desenvolvimento econômico, para o aprimoramento das instituições democráticas e para o exercício pleno da cidadania”. Por isso, conclui, neste momento “o MCTI celebra um futuro em que a ciência e a tecnologia são mais do que um instrumento de progresso e soberania nacional e tecnológica: são um pilar fundamental para a construção de uma nação mais justa, democrática e próspera para todos”.
Porém, para aquilatar-se quanto há de realidade e quanto há de retórica nessas afirmações, é recomendável verificar quem são os coautores do artigo. Assim, para ficar apenas nos nomes mais conhecidos, temos entre eles o físico José Goldemberg, ex-reitor da USP e ministro de Collor de Melo (a rigor, à época o cargo foi rebaixado a secretaria); o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira, idealizador das “organizações sociais” e que foi ministro de Fernando Henrique Cardoso; Roberto Amaral (PSB), socialista histórico, ministro de Luiz Inácio Lula da Silva; Aloizio Mercadante (PT), atual presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), ministro de Dilma Rousseff; Gilberto Kassab (PSD), ministro do golpista Michel Temer e atual secretário de Governo do governo Tarcísio de Freitas-Felício Ramuth; o ex-astronauta Marcos Pontes (PL), hoje senador bolsonarista, ministro de Jair Bolsonaro.
Até mesmo o trânsfuga Aldo Rebelo (MDB), que por décadas foi a principal figura pública do PCdoB, atuou como ministro de C&T de Dilma, e depois migrou para a direita, aproximando-se cada vez mais dos militares e dos ruralistas a ponto de atualmente haver se tornado um expoente da extrema-direita, figura como coautor do artigo publicado pela Folha.
Os demais signatários do texto, ou coautores, são os ex-ministros Celso Pansera (MDB), Clélio Campolina Diniz, José Israel Vargas, Paulo Alvim e Sérgio Machado Rezende.
Sugestão de “ciência neutra” não resiste à biografia de vários signatários
Ainda que implicitamente, ao congregar um grupo de autores tão díspar e contraditório o artigo parece endossar a tese que postula a “neutralidade” e a “objetividade” da ciência e da tecnologia, ignorando propositalmente os interesses materiais e de classe que atravessam esse setor da economia e da sociedade, bem como os fortes obstáculos que historicamente dificultam a conquista da autonomia tecnológica em áreas vitais para qualquer país que se pretenda soberano.
Kassab, por exemplo, desempenha papel de relevo no governo estadual de São Paulo, que além de cortar verbas da educação pública, privatizar a gestão de unidades da rede estadual de ensino (com apoio do BNDES de Mercadante) e implantar um amplo programa de “escolas cívico-militares”, vem atuando para desmantelar os institutos públicos estaduais de pesquisa, dando continuidade assim à política adotada ao longo de décadas por sucessivas gestões do PSDB.
A Associação de Pesquisadores Científicos de São Paulo (APqC) denunciou, em 2023, que havia 7.900 cargos vagos nos 16 institutos estaduais de pesquisa ligados às áreas de saúde, meio ambiente e agricultura, contra apenas 2.200 cargos preenchidos. Portanto, de 10.100 servidores que deveriam estar trabalhando, apenas 21% estão contratados e em atividade. Além disso, a perda salarial da força de trabalho desses institutos, desde 2013, já somava 54% em 2024. O Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), que não se inclui entre os 16 citados, sofre idêntica precarização e passa por um processo de feroz privatização.
Pontes foi ministro decorativo de um governo neofascista que atacou duramente as universidades públicas federais e a ciência de modo geral, de múltiplas formas, com destaque para o negacionismo e a estratégia antivacina adotados durante a pandemia de Covid-19.
Goldemberg é um ícone da ciência neoliberal, e sua lista de “docentes improdutivos” é um marco no advento do produtivismo acadêmico. Bresser-Pereira, que hoje se declara marxista e crítico do neoliberalismo, quando ministro da Administração Federal e Reforma do Estado e, depois, de C&T, adotou ou avalizou medidas neoliberais que impactaram perversamente o serviço público brasileiro.
Entre outras leituras possíveis, o artigo permite a conclusão, infelizmente, de que a visão da ciência e da tecnologia que unifica a principal coautora e seus doze coautores, personagens de trajetórias e inserções tão diversas, é a sua corrente mainstream, ou seja: a ciência neoliberal e suas aplicações, cujo eixo é o mercado. Talvez isso explique porque não constam no texto menções ao Sistema Único de Saúde (SUS), à agroecologia e à agricultura familiar, às ciências humanas, à produção nacional de fármacos essenciais inclusive com quebra de patentes, à necessidade de reduzir as enormes desigualdades sociais e culturais.
O artigo alude brevemente aos planos de (re)industrialização do país, ao citar “investimentos expressivos e crescentes na estruturação de novas bases tecnológicas para o desenvolvimento industrial do Brasil (a Nova Indústria Brasil, NIB) e na viabilização de grandes projetos de infraestrutura de pesquisa, como o supercomputador para IA, o Laboratório de Máxima Contenção Biológica (Orion), o Reator Multipropósito Brasileiro (RMB) e os satélites CBERS 5 e 6, entre outros”, mas sequer toca no fato de que será preciso, para tanto, enfrentar a condição atual de mero produtor de commodities e de “estação de engorda” do capital financeiro, que lhe foi reservada pelas oligarquias na divisão internacional do trabalho.
O texto fala em “visão estratégica de Inteligência Artificial (IA)”, porém omite a discussão sobre o capitalismo de plataformas e a urgente necessidade de soberania digital. “Em um mundo cada vez mais interconectado e competitivo, a capacidade de desenvolver ciência de fronteira — como a exploração espacial, a biotecnologia e a nanotecnologia — define o protagonismo dos países no cenário global” é uma das frases que melhor definem seu espírito de adesão ao mainstream.
Fortaleça o seu sindicato. Preencha uma ficha de filiação, aqui!
Mais Lidas
- Direção da Faculdade de Medicina assume como seu o curso pago “Experiência HC” (oferecido pela Fundação Faculdade de Medicina), e ainda escamoteia a finalidade real, que é o lucro privado; estudantes protestam
- Atendendo a pedido da Adusp, CPA e CAD prorrogam prazo para inscrições na Progressão Horizontal
- Governo Tarcísio recorre contra liminar que suspendeu audiência pública sobre venda de fazendas experimentais da SAA, mas sofre nova derrota
- Proposta de regulamentação do programa de educação infantil da USP mantém exclusão de filhos(as) de pós-doutorandos(as) das creches; documento não fala em contratações para recompor quadro de pessoal
- Adusp publica “Cartilha sobre Direitos do Corpo Docente da USP”