Democracia na USP
Inconsistente, proposta de novo “Estatuto de Condutas” invade searas da avaliação docente e da liberdade de expressão
08/12/2020 12h49
Um dos pontos principais da minuta do novo Estatuto de Conformidade de Condutas da USP — que os membros do Conselho Universitário (Co) receberam na semana passada para avaliação e a respeito do qual podem enviar comentários e sugestões à Secretaria-Geral até o dia 15/1/2021 — é a definição de quatro tipos de infrações que podem ser caracterizadas em relação às servidoras e aos servidores docentes e técnico-administrativos: de potencial ofensivo grave, elevado, médio ou leve.
De acordo com o artigo 10 da proposta, são consideradas “infrações gerais de potencial ofensivo grave”, por exemplo, “danificar ou permitir dolosamente que terceiros danifiquem bens integrantes do patrimônio da Universidade” ou “assediar sexualmente outrem dentro de instalações da Universidade ou, independentemente da localização, quando em função de atividades acadêmicas ou institucionais”.
No caso dessas infrações, as sanções aplicadas ao final dos processos podem chegar à demissão a bem do serviço público — o que impede a pessoa punida de retornar ao serviço público durante determinado período — ou à cassação da aposentadoria.
Já “insistir em greves após serem elas consideradas abusivas ou a elas aderir, em prejuízo da continuidade da prestação do serviço” é uma das “infrações gerais de potencial ofensivo elevado praticadas por servidores docentes ou técnico-administrativos”, conforme determina o artigo 11. Esse tipo de infração também pode acarretar a demissão do servidor.
Para alunos e alunas, o Estatuto estabelece possibilidade de expulsão ou cassação do diploma em caso de infrações graves, suspensão de cinco a 60 dias no caso de infrações médias e advertência nas infrações leves.
“Chamam atenção alguns pontos que reforçam uma lógica de ‘vigiar e punir’”, ressalta Reinaldo Souza, diretor do Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp). “Causa especial preocupação a previsão de punição por adesão a greves consideradas abusivas — consideradas por quem?, ou ainda a previsão de punição por manifestações que possam afetar a imagem pública da universidade. Afinal, a denúncia política da administração da universidade por ações consideradas equivocadas pode em algum grau afetar a sua imagem. Isso seria punido? Em princípio, parece-nos uma lógica de censura permanente, ainda que o documento diga resguardar o direito à liberdade de expressão”, afirma.
O diretor do sindicato também questiona o prazo exíguo para o envio de comentários por parte de conselheiros e conselheiras. De acordo com o reitor Vahan Agopyan, uma comissão de sistematização coordenada pelo professor Floriano de Azevedo Marques Neto, diretor da Faculdade de Direito, vai analisar as contribuições recebidas e preparar uma nova versão do documento, que será apresentada numa “consulta pública” online aberta a toda a comunidade. Dessa consulta resultará finalmente o documento a ser apreciado e votado no Co. Agopyan não fixou um cronograma para todo o processo.
“É preocupante o caráter antidemocrático dessa discussão, feita a toque de caixa. Embora seja necessária uma total revisão de todos os dispositivos disciplinares que regem a universidade, pois alguns deles remontam inclusive à Ditadura Militar, isso não pode ser feito sem amplo diálogo com a comunidade”, observa Reinaldo Souza. “Um tema complexo como esse deveria ser amplamente discutido não apenas através de sugestões individuais, mas em diálogo também com as entidades de estudantes, funcionários e docentes. Divulgar a versão preliminar do documento no final de novembro dando como prazo para envio de sugestões o início de janeiro é um desrespeito para com a comunidade.”
Punição de greves e de críticas às autoridades universitárias é preocupante
Numa reunião do Co em que apresentou a primeira versão do documento, em agosto de 2019, o professor Floriano Marques Neto disse que o Estatuto pretendia “sair de um sistema anacrônico”, com regras estabelecidas na virada das décadas de 1960/70, e “trazer essa legislação para o mundo em que nós vivemos”.
Como aponta a advogada Lara Lorena Ferreira, do Departamento Jurídico da Adusp, o artigo 4o das Disposições Transitórias do Regimento Geral da USP, aprovado pela Resolução 3.745, de 19/10/1990, mantém em vigor “as normas disciplinares estabelecidas no Regimento Geral da USP editado pelo Decreto 52.906”, de 27/3/1972. Na avaliação da advogada, o texto do Estatuto deveria trazer a menção expressa de que haverá revogação do referido artigo.
Um ponto positivo, considera Lara Ferreira, é que os parâmetros de conduta normatizados pelo Estatuto não serão aplicáveis apenas dentro dos limites geográficos ou do ambiente dos campi da USP, mas em relação ao vínculo específico mantido com a universidade.
Quanto à possibilidade de enquadrar a participação em greves como infração de potencial ofensivo elevado, conforme o artigo 11 do Estatuto, a advogada diz que “a greve é direito constitucional e sua abusividade somente pode ser declarada judicialmente, cabendo ao próprio Poder Judiciário impor eventual sanção”. “Punir pessoalmente o funcionário pela eventual conduta abusiva não tem previsão legal”, prossegue.
A cassação da aposentadoria, inclusive para os professores seniores, prevista no artigo 31, é uma questão controversa, de acordo com Lara Ferreira. “Há entendimento judicial divergente pela impossibilidade desse tipo de aplicação de pena, haja visto o componente contributivo previdenciário para a obtenção da aposentadoria”, diz.
Em relação aos docentes, o artigo 16 classifica como infrações de potencial ofensivo médio deixar de entregar relatórios e deixar de cumprir metas de produção “fixadas pelos Departamentos e Comissões aos quais [o docente] esteja vinculado em conformidade com os Projetos Acadêmicos”.
Na avaliação do professor Adrián Pablo Fanjul, docente da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), “em vez de limitar-se ao que é disciplinar, o código invade assuntos como a avaliação da produção docente, para a qual já existe normativa específica, como o Estatuto do Docente e o Regimento da Comissão Permanente de Avaliação (CPA)”.
No caso do artigo 16, Fanjul lamenta que uma dimensão “que deve fazer parte da avaliação acadêmica de qualidade e ter resultados nesse sentido — progressão ou não, questionamento, em extremo, do regime de trabalho — passe a estar em uma mesma lista de infrações, embora em menor grau, com o plágio, a agressão física, a difamação etc”.
“O estatuto proposto invade perigosamente a liberdade de expressão, inibindo críticas às políticas das autoridades universitárias”, afirma Adrián Fanjul. O artigo 2º menciona que os membros da comunidade universitária podem ser responsabilizados por qualquer atividade que prejudique “a segurança, os interesses ou a reputação da Universidade”. Já o artigo 11 classifica de infração de potencial ofensivo elevado “agredir moralmente servidor, docente ou não, aluno ou outro membro da comunidade da Universidade, presencialmente, pela mídia ou por redes sociais”.
“Como entender, por exemplo, o que seria prejudicial aos interesses ou à reputação da universidade?”, pergunta o docente, que cita dois exemplos recentes:
1) Depoimentos publicados na mídia e nas redes sociais por docentes e servidores com duras críticas ao “Boat Show”, realizado em novembro na Cidade Universitária. “O que aconteceria se a Reitoria pudesse decidir que essas publicações afetam ‘a reputação da Universidade?’”, questiona.
2) A publicação da nota do Grupo de Trabalho do Hospital Universitário da USP (GT-HU), por ocasião da morte por Covid-19 do funcionário do HU José Manoel Sápia, pertencente ao grupo de risco, com críticas à postura da Reitoria e da Superintendência do hospital: “Tal ocorrência poderia ter sido evitada se desde o início da pandemia a Reitoria e a Direção do HU tivessem adotado uma política de preservação da saúde e da vida de trabalhadoras e trabalhadores do HU, assim como também de usuárias e usuários”, diz o texto. “Acaso alguém não poderia interpretar que isso também afeta ‘a reputação da universidade?’”, continua Fanjul.
“Se as autoridades universitárias se consideram moralmente ofendidas ou injuriadas ou difamadas por declarações de professoras e professores na mídia ou em redes sociais, elas têm à disposição toda a legislação penal sobre o tema e a competência da Justiça. Para que criar um instrumento interno cheio de ambiguidades, que substitui a Justiça regular por tribunais internos com poderes extremamente ameaçadores, como o de cassar aposentadorias?”, questiona o docente da FFLCH.
Texto utiliza conceitos e critérios subjetivos para caracterizar infrações
A advogada Lara Ferreira aponta vários dispositivos do Estatuto cuja redação apresenta conceitos e critérios bastante subjetivos, como a infração caracterizada no inciso XI do artigo 11: “Descumprir reiteradamente as determinações dos superiores hierárquicos, mesmo após advertido formalmente da impropriedade da conduta”. A redação não leva em conta que as ordens dos superiores podem ser inadequadas ou irregulares, diz ela.
Outras formulações subjetivas na caracterização das infrações estão presentes no documento: “praticar conduta não tipificada nos artigos anteriores, mas que atente contra as finalidades da Universidade” (artigo 12, inciso I); “agir deliberadamente em desabono à Universidade, concorrendo para enlodar sua reputação, respeitado sempre o direito de expressão e manifestação” (artigo 12, inciso III); “atuar em desacordo com os princípios estruturantes da Universidade, mediante condutas que não configurem as hipóteses típicas previstas nos artigos anteriores” (artigo 13, inciso I); “desrespeitar os valores éticos da Universidade” (artigo 13, inciso II).
Já o artigo 10 determina que “receber qualquer proveito pessoal de parte de empresas que mantenham relação com a Universidade em virtude de suas funções” é uma infração geral de potencial ofensivo grave que pode ser praticada por docentes ou servidores técnico-administrativos. “Só de empresas? As fundações [privadas, ditas “de apoio”] ficam de fora?”, questiona a advogada.
O mesmo questionamento se aplica ao inciso VI do artigo 11: “exercer, mesmo fora das horas de trabalho, qualquer emprego ou função em empresas, estabelecimentos ou instituições que tenham relações com a Universidade, em matéria ou atividade incompatível, de forma a caracterizar conflito de interesses”, infração considerada de potencial ofensivo elevado.
Já “recusar-se a atualizar seus dados cadastrais quando solicitado” (artigo 13, inciso VI) é infração de potencial ofensivo leve. “Aqui não faz diferença quem pede, quando pede ou por que pede? Ou, ainda, quais os dados solicitados?”, questiona a advogada. “Os dados são pessoais e, a depender do motivo do pedido ou de quem o pede, a recusa pode ser justificada.”
O artigo 35 discrimina os dois procedimentos do “processo de investigação e responsabilização no âmbito da Universidade”: serão “o processo de investigação preliminar” e o “processo de responsabilização disciplinar”. Na avaliação da advogada, porém, o Estatuto não deixa claro se o papel do Grupo de Apuração de Condutas Desconformes (Gracode), citado pela primeira vez nesse artigo, será o de concentrar todos os processos disciplinares ou o de uma espécie de supervisor das comissões processantes formadas em cada unidade.
O artigo 46, por sua vez, determina que a comissão de investigação preliminar “ouvirá testemunhas para esclarecimento dos fatos referidos na portaria de designação e o imputado, se julgar necessário para esclarecimento dos mesmos ou a bem de sua defesa, permitindo-lhe juntada de documentos e indicação de provas”.
“O imputado será ouvido somente se a Comissão julgar necessário? Mesmo preliminarmente, pelo direito de defesa, é sempre necessário ouvi-lo”, argumenta Lara.
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