USP vive crescimento das atividades privadas e desestruturação dos princípios de sua concepção, apontam participantes de debate promovido pela Adusp
Professora Michele Schultz em sua intervenção no debate (foto: Daniel Garcia)

Cursos pagos, crescente presença de atividades de entidades privadas na USP, quebra da indissociabilidade de ensino, pesquisa e extensão; arrocho salarial e busca de “complementação” nos vencimentos: esses foram alguns dos temas em pauta no debate “Universidade pública: concepções, financiamento e carreira”, promovido pela Adusp no último dia 20/6.

Compuseram a mesa o professor Elias Salomão Helou Neto, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP em São Carlos, e a professora Lucília Daruiz Borsari, do Instituto de Matemática e Estatística (IME). A mediação ficou a cargo da professora Soraia Chung Saura, da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE) e 2ª vice-presidenta eleita da Adusp.

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Professor Elias Salomão Helou Neto

Na sua fala de abertura, Salomão afirmou que a universidade deve se manter pública e gratuita e respeitar as pessoas que a compõem. O professor considera, entretanto, que não é necessário “ser totalmente avesso à existência de financiamento para atividades de pesquisa, por exemplo, desde que isso não distorça a finalidade maior da universidade pública”. Ao mesmo tempo, porém, ele constata “a proliferação de MBAs e de espaços dentro dos campi da universidade sendo cedidos para entidades privadas”.

Salomão defendeu também a reestruturação da representatividade das categorias, especialmente a docente, que em sua visão é ínfima, “em todas as instâncias da universidade, desde o departamento até o Conselho Universitário (Co)”.

Na avaliação do professor, “não se pode mais acreditar que a remuneração vai ser composta exclusivamente do salário”. “Os benefícios compõem parte importantíssima da remuneração de um trabalhador no mundo moderno. Complementar os vencimentos que vão se tornar eventualmente cada vez mais parcos com benefícios não é ser neoliberal, é estar atento à realidade dos fatos”, apontou.

Salomão reforçou que “o financiamento da universidade tem que se manter majoritariamente público, como é na atualidade”, embora a seu ver não seja possível “recusar terminantemente aceitar recursos de outras fontes, desde é claro que isso não subverta os valores de uma universidade pública, que tem que continuar gratuita, de qualidade, igualitária e tem que respeitar o trabalho do servidor público”. Salomão defendeu ainda o fortalecimento das entidades sindicais na universidade e criticou a atitude de muito(a)s colegas que não se veem como trabalhadore(a)s.

Quebra do modelo se consolidou a partir do Estatuto de 1988

A professora Lucília Borsari, na sua primeira intervenção, traçou um histórico das concepções que nortearam a criação e a trajetória da USP: a formação de uma elite intelectual com o objetivo claro de atender aos interesses dos setores dominantes da sociedade; a articulação desde o princípio entre ensino, pesquisa e extensão; e a dedicação exclusiva do(a)s docentes.

Ao mesmo tempo, porém, “a estrutura de poder da universidade sempre foi desde a sua criação até hoje não democrática e autoritária”. Essa realidade “de forma alguma permitiu que se possa levar discussões de várias ordens sobre temas de que a universidade se ocupa”, definiu.

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Professora Lucília Borsari

A professora chamou a atenção também para outro aspecto que caracteriza a USP desde o seu início: a criação de vários mecanismos de controle do corpo docente, como o estabelecimento de contratos precários, que tinham tempo determinado e expunham o(a)s docentes a uma situação de insegurança, já que a qualquer momento o seu vínculo com a universidade poderia não ser renovado. “Docentes com vinte, vinte e cinco anos de trabalho foram mandados embora. Aconteceram [novas] exonerações recentemente, porque ainda há algo como uma centena de docentes com contratos precários”, apontou.

Uma quebra do modelo inicial passou a se consolidar a partir de 1988, e recebeu impulso com a adoção em 2016, na gestão M.A. Zago-V. Agopyan, do novo Estatuto do Docente, que introduz a ideia da avaliação quinquenal – que demorou muito a se consubstanciar e ocorreu somente a partir de 2017, disse a professora.

Acontecimento muito significativo da época, lembrou, foi a divulgação pública pela Folha de S. Paulo da chamada “lista dos improdutivos” na gestão do então reitor José Goldemberg.

“O fato de um reitor se propor a elaborar uma lista como essa indicava que a partir daquele momento a pesquisa passava a ser entendida pelo seu resultado, e não pelo processo de reflexão, e se indicava uma quebra da indissociabilidade entre as três dimensões, com a valorização maior da pesquisa”, avalia Lucília.

Ao longo das décadas seguintes, a perspectiva produtivista vai tomando conta da avaliação dos concursos de ingresso, dos concursos de progressão na carreira, das avaliações da pós-graduação, das agências de fomento e da Comissão Especial de Regimes de Trabalho (CERT), descreveu. Todo esse conjunto de fatores provocou “uma inflexão importante do ponto de vista de como a gente concebia a universidade, ainda que com várias críticas e vários problemas”.

A professora considera que a USP vive um crescente processo de privatização, com a atuação das fundações privadas autodenominadas “de apoio”, a flexibilização do Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP) e o arrocho salarial, condições que “facilitam os docentes a procurar alternativas de complementação salarial”.

“As fundações e os cursos pagos complementam os salários daqueles que participam dos projetos, mas não trazem recursos significativos para a universidade. A experiência mostra que esse não é um caminho para angariar recursos”, afirmou. A relação com as fundações acaba sendo dominante no dia a dia do trabalho e vai muito além das oito horas de flexibilização do RDIDP, ressaltou.

Outro ponto destacado pela professora é a recente ênfase na inovação, “a partir do que a universidade entende do conceito”. “Isso significa ampliar a relação da universidade com a sociedade? Não, mas [amplia] a relação da universidade com o mercado”, considera.

Lucília Borsari defende a resistência a esse quadro de mudanças na concepção de universidade que a USP adota. “Para resistir a isso é preciso que haja algum grau de democracia na universidade. Ela precisa construir um projeto institucional para cumprir a sua função social e precisa refletir sobre a pesquisa de modo socialmente referenciado. Ela tem que priorizar questões que vão contribuir para a transformação da sociedade, e para isso é necessário haver democracia”, enfatizou.

Recursos repassados à USP são insignificantes, considera professora

Em sua segunda intervenção, Elias Salomão reforçou que acredita que “há recursos significativos que podem vir do setor privado e há muitos professores que se beneficiam desses recursos”, afirmando que em seu próprio departamento “muitos colegas sofreriam impacto financeiro se esse MBA deixasse de existir”.

“O docente deveria ser remunerado de forma suficiente para não precisar desse tipo de atividade. Entretanto, se desejar esse tipo de atividade, acredito que deveria ser permitido. Muitos dos nossos colegas foram contratados com essa realidade em andamento e não conhecem outra”, descreveu.

De acordo com o professor, “algumas dessas pessoas prefeririam não trabalhar nos MBAs e nos projetos externos se não tivessem um salário precarizado, enquanto outras o fariam de qualquer modo”.

A existência dos cursos pagos gera distorções no interior das unidades, como descreveu o próprio Salomão. “O diretor do MBA escolhe quem vai dar aula. Não existe um processo seletivo. Essa pessoa ganha muito poder dirigindo um MBA e acaba por deter a determinação dos rumos financeiros de um grupo enorme de pessoas dentro de um departamento”, relatou.

Salomão também reconhece que “as pessoas se desmobilizam [na defesa dos salários e direitos] quando ganham muito dinheiro fazendo MBA, e isso é uma estratégia”. “Podemos tentar de forma mais esperta desbaratar isso. Dizer que não pode fazer não vai funcionar”, considera.

Lucília Borsari, por sua vez, lembrou que a Adusp já produziu bastante material, especialmente via reportagens da Revista Adusp, que demonstra que os recursos destinados à universidade por meio das fundações privadas ditas “de apoio” são insignificantes.

“Eu conheço uma universidade que na grande maioria de suas unidades vivenciou anos a fio seu trabalho sem fundações nem MBA”, afirmou. “Estamos de alguma forma aceitando que podemos ter uma parte do nosso salário corroída pela inflação. Não podemos [aceitar]”, defendeu.

Atuação em atividades privadas gera distorções

As manifestações do público no debate ressaltaram principalmente as distorções provocadas pela atuação das entidades privadas na universidade.

André Felipe Simões, docente da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), apontou que, “cada vez que você dedica mais tempo ao projeto [privado], piores são as suas aulas, pior é a orientação ao mestrado e doutorado, pior é a dedicação aos alunos de graduação, aos trabalhos de conclusão de curso, à iniciação científica etc.”.

Muito mais do que complementação de renda, a ênfase nas atividades privadas “tem a ver com entreguismo, com não se dedicar ao seu trabalho, é só por grana”, afirmou.

Tercio Redondo, docente da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), ressaltou que “o caráter público da universidade diz respeito à sua independência”. “Ela deve ser independente em relação ao governo ou a governos e deve totalmente independente em reação ao mundo privado”, defendeu.

Na avaliação do professor, “até uma criança de sete anos” compreende que não há como não desequilibrar as atividades “se você de algum forma se torna financiado por uma empresa privada, um banco, que te paga 10 vezes mais do que aquilo que a USP está te pagando”. “Eu já vi isso. O sujeito não veio dar aula porque foi chamado para uma reunião, e ele não vai dizer ‘não’ para uma reunião, vai dizer ‘não’ para os alunos”, relatou.

A presidenta da Adusp, professora Michele Schultz, afirmou que o caráter público da universidade é ameaçado, por exemplo, pela realização de cursos de extensão que eram oferecidos gratuitamente e passaram a ser pagos. Na sua avaliação, a Adusp deve ser um polo de resistência na defesa de um conjunto de princípios ameaçados.

No contexto mais amplo, a professora relacionou a situação da universidade à crescente ameaça aos direitos sociais, como saúde e educação, cada vez mais privatizados. “Esses e uma série de outros elementos deveriam ser direitos de competência do Estado e passam a ter cada vez mais a gestão privada”, apontou.

“Os docentes vão querer trabalhar no que paga mais”

Nas considerações finais, Salomão reiterou sua posição de que relacionar-se com o mercado “não significa necessariamente dependência” e que devem existir “mecanismos de controle bem pensados e que possam ser avaliados”.

Outra distorção relatada pelo professor foi a manifestação de um colega, representante docente na congregação da unidade, que votou contra a criação de um novo MBA no departamento, “porque já havia demais”. Esse mesmo docente, seguindo relatou Salomão, se recusa a ministrar disciplinas no departamento e prefere se dedicar aos cursos pagos. “Os docentes vão querer trabalhar no que paga mais para eles”, afirmou.

Salomão defendeu ainda que sejam criados mecanismos “para distribuir o overhead [taxas que devem ser destinadas à unidade ou à universidade] dessas iniciativas para o restante do corpo docente que não coaduna com isso, que não participa desse tipo de extensão paga”. “Tomando esse tipo de cuidado a gente consegue minimizar, mas não anular, minimiza muito a influência do mercado nos rumos da universidade”, finalizou.

A professora Lucília Borsari reforçou seu ponto de vista de que é muito difícil controlar esse tipo de atividade, que inevitavelmente levará a distorções como as relatadas no próprio debate, “o que desvirtua e atrapalha o trabalho acadêmico”. “Esse tipo de atividade é fundamentalmente deletéria para a universidade pública”, afirmou.

A professora lembrou que algumas fundações “de apoio” chegaram a ter sede no próprio câmpus da Cidade Universitária, o que qualificou como “uma apropriação indébita do patrimônio público para atividades privadas”.

“Isso precisa ser enfrentado, sob pena de a gente não respeitar o caráter público da universidade”, defendeu. “É preciso de alguma forma apostar na organização da luta coletiva. Se não apostarmos nisso, e apostarmos em propostas que mais facilmente podem ser aprovadas por essa estrutura antidemocrática da universidade, não vamos caminhar na direção de restituir nossos direitos”, concluiu.

EXPRESSO ADUSP


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