Defesa da Universidade
Ao contrário do que diz Vahan, a USP está longe de ter superado seus obstáculos
Nota da Diretoria da Adusp enfatiza que a Reitoria segue insensível, avessa ao diálogo e compenetrada em aprofundar um projeto de universidade que cada vez mais a afaste de sua função social e a aproxime de interesses alheios à coisa pública e afinados com o mercado — nesse projeto, a USP é uma universidade de pesquisa em que as atividades de ensino e de extensão são concebidas como secundárias
A manifestação do reitor da USP no Jornal da USP de 24/1/2021 revela o quanto a administração universitária está alheia ao cotidiano das pessoas que trabalham e estudam na universidade. Num tom ufanista, em nada compatível com o que se espera do reitor de uma universidade na qual devem prevalecer a reflexão e o pensamento críticos, não se vislumbram nessa manifestação quaisquer elementos que possam se assemelhar a uma análise mais aprofundada sobre o que de fato ocorreu na USP em 2020.
O ano de 2020 será lembrado como um período que exigiu muito de cada um(a) de nós sob os mais diferentes aspectos da vida, tanto no campo pessoal quanto profissional. Será talvez lembrado também como um ano de muitas oportunidades desperdiçadas no sentido de contribuir para a conscientização da sociedade em relação à necessidade de financiar adequadamente os serviços públicos, de buscar reparar injustiças e combater desigualdades e de apostar na construção de processos democráticos de discussão e de tomada de decisão.
Por óbvio, nada disso se poderia esperar daqueles que hoje governam o país, e não faltam motivos racionais e objetivos para justificar que o atual presidente seja impedido de permanecer no cargo. Pouco se poderia esperar também daqueles que governam o estado de São Paulo, que se pretendem identificados com uma posição de defesa da ciência, mas que na realidade agem de modo a precarizar e inviabilizar os institutos públicos de pesquisa, a cortar verbas para o fomento da pesquisa, a arrochar salários e a favorecer setores ligados aos grandes negócios por meio de isenções fiscais injustificáveis que impactam de modo significativo o financiamento da saúde, da educação e dos demais direitos sociais.
Mas e a Reitoria da universidade, como agiu no ano de 2020? Vejamos.
- A migração das aulas da modalidade presencial para remota foi feita de modo apressado, sem que houvesse a preocupação de estimular as unidades a discutir essa possibilidade e a avaliar as suas necessidades, inclusive do ponto de vista de não gerar a exclusão de alunas e alunos que porventura não tivessem condições de acompanhar as aulas remotamente. Não houve qualquer preocupação com o modo como se faria essa migração e com os efeitos na formação de estudantes caso a retomada das aulas presenciais não fosse possível no curto prazo, como de fato ocorreu. Não houve sequer uma reunião do Conselho Universitário (Co) para discutir se a posição da Reitoria seria ou não o caminho a seguir. A decisão foi unilateral, sem mediação, sem diálogo. A Reitoria insiste em divulgar o percentual de disciplinas que foram ministradas a distância, mas não se ocupa de avaliar os impactos dessa migração no processo de formação das e dos estudantes. E vai além: pautada no falacioso sucesso das atividades remotas, a Pró-Reitoria de Graduação lança edital (PRG 01/2020-2021) de criação de um chamado “Consórcio Acadêmico”, que pretende fundar o modelo híbrido de ensino.
- Professoras e professores tiveram que se adaptar à nova realidade de aulas remotas em meio a dificuldades de várias ordens. Em função dessas circunstâncias adversas, a Adusp reivindicou que todos os prazos para entrega de relatórios fossem estendidos e que não houvesse rebaixamentos de regime de trabalho durante a pandemia. A Comissão Especial de Regimes de Trabalho (CERT) concordou com os argumentos apresentados para a prorrogação de prazos, e a Reitoria, a partir de uma demanda de um grupo de mulheres e da Rede Não Cala!, determinou que o período de licença parental não pode ser considerado em prejuízo das e dos docentes. Reitor e CERT decidiram, no entanto, que a prorrogação de prazos passaria por uma análise caso a caso. Dado o histórico de “avaliação” punitiva dessa comissão, tal decisão pode ter dificultado ainda mais a situação de docentes em regime experimental ou probatório. Importante mencionar ainda que a CERT não deixou de decidir pelo rebaixamento do regime de trabalho de docentes durante a pandemia!
- Mesmo não sendo obrigada a se submeter à Lei Complementar 173/2020, a Reitoria recorreu a essa lei para suspender a contagem de tempo para efeito de quinquênio, sexta-parte e licença-prêmio, não homologar os concursos de livre-docência, suspender os concursos de ingresso e adiar os ajustes salariais decorrentes de progressão na carreira, a despeito do comprometimento com a folha de pagamento estar dentre os mais baixos dos últimos anos, conforme atestam os informativos divulgados pela Coordenadoria de Administração Geral (Codage) da universidade. O lema cunhado pelo reitor de que a “USP não para” não inclui a Reitoria, que parou de garantir os direitos de docentes e funcionária(o)s autárquica(o)s.
- O vice-reitor, na qualidade de presidente da Comissão Permanente de Avaliação (CPA), baixa um edital para a progressão horizontal, também de modo unilateral, sem mediações, impondo um ranqueamento entre a(o)s docentes. O edital fere o regimento da CPA ao promover a progressão horizontal antes de terminada a avaliação quinquenal e ao impor a avaliação comparativa entre candidata(o)s no âmbito das unidades e da universidade. Em plena pandemia, quando se esperaria cultivar atitudes de solidariedade e cooperação, a Reitoria promove um processo competitivo que tem potencial de comprometer negativamente e de modo significativo as relações de trabalho nas unidades e na universidade.
- O Hospital Universitário (HU) é um hospital-escola que se caracteriza por realizar pesquisa, ensino e extensão, sendo o único hospital público de atenção secundária (média complexidade) da região Oeste da cidade de São Paulo. Foi absurda e irresponsavelmente sucateado na gestão M. A. Zago-V. Agopyan, e só não foi desvinculado da USP por resistência da comunidade. Nem a pandemia parece ter sido suficiente para mostrar aos dirigentes da gestão V. Agopyan-A. Hernandes, ocupados apenas em ajustar a qualquer custo o orçamento da universidade, a importância e a relevância desse hospital. Apesar de insuficientes e temporárias, todas as contratações feitas pelo hospital no último período foram decorrentes da batalha do Coletivo Butantã na Luta, que conta com o apoio da Adusp e do Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp). A atuação do Grupo de Trabalho do HU (GT-HU), criado em junho de 2020 e do qual participam esses três segmentos, tem sido essencial para que o funcionamento do HU não seja ainda mais precarizado.
- O “Estatuto de Conformidade de Condutas da USP”, uma peça elaborada exclusivamente pelo diretor da Faculdade de Direito da USP, foi distribuído pelo reitor aos membros do Conselho Universitário em 30/11/2020. O documento gerou espanto, preocupação e indignação pelo conteúdo autoritário e pelo seu viés punitivo e repressivo, que ameaça liberdades e fere princípios constitucionais. Para piorar a situação, o reitor havia estabelecido prazo até o dia 15/1/2021 para que os membros do Co se manifestassem a respeito do estatuto. Pressionado por muitas críticas, o reitor alterou a data para 10/5/2021. Entretanto, não basta dilatar prazos: um documento como esse depõe contra a Reitoria da universidade e deve ser retirado de pauta!
- A despreocupação com as condições da moradia universitária, tanto em relação às instalações quanto ao acesso à Internet, é inegável, e essa situação foi objeto de matérias até mesmo na grande imprensa. Ainda assim, pouco tem sido feito para dar condições de moradia adequadas para as e os estudantes que residem no Conjunto Residencial da USP (Crusp).
- A Reitoria autorizou a realização do evento Boat Show na Raia Olímpica da Cidade Universitária, na contramão das medidas sanitárias indicadas para a prevenção da Covid-19. Um evento desse tipo dificilmente se dissocia de algo voltado para um conjunto de pessoas privilegiadas e bastante favorecidas na sociedade. A Reitoria não se ocupou de garantir as medidas de isolamento social nem tampouco do efeito que causaria o contraste entre o evento e as condições, agravadas pela pandemia, a que estão sujeitas as pessoas que moram no Crusp. A repressão que sofreram, quando protestavam legitimamente contra a realização do evento, além de inadmissível, reforça a ideia de descaso da Reitoria para com a(o)s residentes.
- A decisão do retorno de funcionárias e funcionários às atividades presenciais (o que acabou não ocorrendo devido à resistência das e dos servidores e ao agravamento da pandemia) se caracterizou como medida desnecessária e discriminatória que, mais uma vez, foi tomada pela Reitoria sem qualquer consulta aos órgãos colegiados e às unidades.
- Em plena pandemia, sob o argumento de necessidade de controle das despesas por conta dos prováveis impactos na arrecadação (Portaria GR 7.639, 22 de maio de 2020), a Reitoria permitiu cortes de até 25% nos gastos com as empresas terceirizadas nas unidades, resultando na demissão de funcionárias e funcionários, principalmente da limpeza. Sabe-se que esse setor é o mais subalternizado e vulnerabilizado e, dando as costas a essa parcela fundamental da comunidade universitária, a Reitoria garantiu-lhe o desemprego!
- A falta de diálogo da gestão V. Agopyan-A. Hernandes parece seguir a mesma toada da imposta pela anterior, a de M. A. Zago-V. Agopyan. A despeito de a Diretoria da Adusp reivindicar audiências com o reitor já há quase um ano, ainda não fomos recebidos. Houve apenas uma reunião com a chefia de gabinete, com a presença do presidente da CERT. Já não se pode mais adiar a abertura de um espaço de diálogo franco e frequente entre a entidade representativa das e dos docentes e o reitor da USP!
As condições de trabalho na universidade estão cada vez mais difíceis e precarizadas. Os salários perdem poder aquisitivo frente à inflação a cada ano que passa. A previdência não oferece nenhuma tranquilidade a uma parcela cada vez maior de docentes. Os níveis iniciais da carreira estão extremamente desvalorizados. O HU tem sido sucateado, dificultando o acesso a um atendimento de saúde adequado. As exigências de produtividade são absurdas, exageradas e privilegiam quantidade e não qualidade. Há falta de docentes e, consequentemente, sobrecarga de trabalho. Não há compromisso efetivo da universidade para enfrentar as questões de gênero e de violência contra a mulher.
A Reitoria da USP segue insensível, compenetrada em aprofundar um projeto para a universidade que cada vez mais a afaste de sua função social e a aproxime de interesses alheios à coisa pública, afinados com os interesses do mercado. Nesse projeto, a USP é uma universidade de pesquisa em que as atividades de ensino e de extensão não são valorizadas, na medida em que são concebidas como secundárias. Talvez por essa insensibilidade, a esses gestores pouco importa se as aulas serão ministradas a distância ou presencialmente. O que importa é adequar a USP a esse projeto e, para tal intuito, nada mais conveniente do que a opção pelas aulas remotas em que um(a) único(a) docente — talvez até em Regime de Turno Parcial (RTP) ou com vínculo temporário — possa “atender” a centenas de estudantes.
O trabalho de professoras e professores, de funcionárias e funcionários e de estudantes deve ser valorizado, e as importantes contribuições para o enfrentamento da pandemia merecem todo o reconhecimento. A questão que se coloca é: até quando a universidade vai poder realizar suas atividades com a qualidade que vem fazendo se vivemos uma permanente crise de financiamento que, por não ser de fato enfrentada, gera perdas salariais, sobrecarga de trabalho, desprestígio do ensino e da extensão, desvalorização da carreira docente e direcionamento da pesquisa para áreas de interesse privado?
Como se vê, a universidade está longe de ter superado seus obstáculos, ao contrário do que afirma o reitor da USP. O pacote de medidas autoritárias e inadequadas que acompanhou a gestão da Reitoria em 2020 só aumenta as dificuldades para uma universidade que se pretende pública, gratuita e de qualidade cumprir sua função social.
Os problemas são inúmeros e dificilmente vamos conseguir enfrentá-los em seu conjunto se não lutarmos por espaços democráticos de discussão e deliberação. A democratização da USP é um ponto de partida do qual não podemos abrir mão.
A Diretoria da Adusp
Fortaleça o seu sindicato. Preencha uma ficha de filiação, aqui!
Mais Lidas
- Revista nº 68 - novembro de 2024
- Ex-reitores(as) exigem “punição exemplar” de generais, coronéis e civis envolvidos na trama golpista para assassinar Lula, Alckmin e Moraes
- Alesp aprova projeto que corta recursos da educação pública, proposta qualificada como “retrocesso” e “crime” pela oposição
- Instituto de Psicologia confere diploma póstumo a Aurora Furtado, assassinada pela Ditadura Militar, em cerimônia tocante que também lembrou Iara Iavelberg
- Mais uma vez, Restaurante Universitário de Piracicaba deixa de fornecer refeições, e estudantes exigem “desterceirização” do equipamento