Desigualdades raciais
Não se combate racismo com mais racismo
O professor Celso Oliveira (FZEA), segundo vice-presidente da Adusp, aponta neste artigo a ineficácia e os aspectos nefastos da suposta política afirmativa de contratação de docentes PPI recentemente aprovada pelo Co
Hoje, uma semana depois de o Conselho Universitário da Universidade de São Paulo (Co) ter aprovado ações afirmativas para seus concursos públicos e processos seletivos de docentes e não docentes, é necessário colocar em evidência o que foi aprovado no tocante aos concursos para docentes.
Na semana passada a mídia brasileira e boa parte da mídia internacional deram destaque às atitudes racistas sofridas pelo jogador Vinicius Junior no campeonato espanhol de futebol (“La Liga”). Acontece que o racismo se manifesta de muitas formas, umas tão evidentes como os gritos num estádio de futebol e outras mais sutis como uma decisão administrativa.
Os gritos nos estádios são mais fáceis de identificar, pois escancaram os racistas que os proferem. Uma decisão administrativa tomada de forma colegiada cria camadas de suposta democracia e legalidade para ocultar o racismo presente na sua concepção e aplicação, portanto mais difícil de se ver.
A medida aprovada pelo Co em 22/5 entra para o elenco das normas legais criadas por brancos(as) para decidir a vida de não brancos(as) e ao mesmo tempo manter lugar de privilégio dos próprios brancos, pois sua aplicação é inócua para quem deveria ser beneficiário da nova norma. O precedente mais conhecido é a Lei do Ventre Livre, que libertava escravizados(as) nascidos(as) após 28 de setembro de 1871. Como sabemos não funcionou e a chance de que funcionasse era mínima, e assim como a norma aprovada no Co todos, quando de sua promulgação, sabiam de sua ineficácia.
Poderia citar outros exemplos de como há normas legais que “não colam”, mas algo em comum sobre a maioria delas é que são criadas em benefício da parcela mais fragilizada da população.
Na USP menos de 3% dos docentes se autodeclaram não brancos, enquanto no estado de São Paulo a população de pretas(os), pardas(os) e indígenas (PPI) representa 37% da população total, e no Brasil 56%. Os concursos para ingresso na universidade, assim como em todas as instituições públicas de ensino superior, são baseados na “meritocracia”, porém, como já dito por diversos autores, isto é uma falácia devido aos condicionantes sociais, raciais e econômicos que atuam no processo de disputa de uma vaga de emprego em qualquer de seus níveis.
A normativa aprovada é inócua, pois estabelece uma bonificação para concursos com menos de 3 vagas. Sendo que este é o caso de quase a totalidade dos concursos docentes, onde a escolha do candidato se dá por indicação do membro da banca e não por notas. Notas estas que sim existem nos concursos mas são dadas de forma subjetiva, e em caso de empate de notas entre candidatos(as) a escolha entre eles é de livre opção do membro da banca.
Ou seja: são acrescidos pontos para um candidato ou candidata não branco(a) para somar a uma nota dada de forma subjetiva que de acordo com sua formulação aproxima a nota do(a) candidato(a) à média, fato aliás que só faz sentido para uma grande número de candidatos, caso também raro nos concursos docentes, tendo em vista seu alto grau de especialização. A verdade é que a maioria dos concursos docentes têm apenas uma vaga e um pequeno número de concorrentes.
O que o modelo deixa em evidência é que o Co e a administração da USP, que o propôs, acreditam que candidatos pretos(as), pardos(as) e indígenas (PPI) terão sempre notas inferiores aos(às) candidatos(as) brancos(as) e por isso não são admitidos(as) em concursos; assim, o oferecimento de uma bonificação compensaria sua formação deficiente, de forma a lhes permitir alcançar a pontuação de candidatos(as) brancos(as).
A forma aplicada pela USP novamente aplica o preconceito como meio de colocar a pessoa PPI como subalterna e portanto inferior intelectualmente, e desta forma cria um ambiente no qual o branco pode ser colocado como autor de uma benesse que “ajuda o negro” a alcançar o lugar privilegiado do branco.
É justamente o contrário do que o movimento negro e o Coletivo de Docentes Negras e Negros da USP propuseram, que é um modelo de prioridade na indicação de candidatos(as) negras ou negros com o compromisso da reserva de vagas e metas temporais para as unidades. Nesta lógica o que se coloca é o lugar de direito da população PPI de participar dos espaços de poder da sociedade brasileira, colocando a pessoa PPI em posição de disputa por um espaço que é seu.
Na norma aprovada pelo Co se percebe a fuga da discussão sobre o problema real que é o racismo existente na universidade e na sociedade. Assim como os dirigentes de La Liga que assistiram de camarote aos atos racistas em várias rodadas do campeonato e nada fizeram, a administração da USP fecha seus olhos ao racismo e apresenta uma medida incapaz de combatê-lo de forma real, mas que simula que “algo se fez” a respeito, ao mesmo tempo que estão previstos mais de 600 concursos para os próximos anos.
Falta à USP o entendimento de que sempre houve negras e negros na elite intelectual e produtiva do país, desde exemplos históricos como Machado de Assis, Lima Barreto, Mário de Andrade e irmãos Rebouças até os mais recentes como Milton Santos, Kabengele Munanga, Eunice Prudente, Conceição Evaristo e Sueli Carneiro, para citar algumas pessoas ligadas à própria USP.
Falta à USP admitir que se não temos mais negras e negros docentes é porque há um racismo intrínseco na sua própria gênese elitista, que funciona como um filtro que torna sua forma de fazer concursos desigual para candidatos e candidatas PPI.
Falta a USP, enfim, reconhecer-se como uma instituição racista! Não basta registrar que foi a última instituição pública de ensino superior a adotar o modelo de cotas para ingresso na graduação, não basta apresentar as estatísticas já citadas, não basta conhecer o número de PPIs na sua pós-graduação, nada disso parece ser suficiente para a USP reconhecer seu papel na manutenção do racismo na sociedade brasileira?
É hora de a USP tomar medidas que sinalizem para a sociedade paulista que é o que diz ser: uma instituição moderna, inovadora e presente na sociedade brasileira. Não se pode afirmar isso sem a presença de PPIs no seu corpo docente e administrativo.
A resolução do Co ainda carrega consigo uma retórica de maldade, é o fato aprovado de que só poderá ser revista depois de três anos, ou seja: após o grande número de concursos previstos. Este ponto parece ter sido elucidado pela fala do reitor à Folha de S. Paulo: “Não podemos ter uma política muito agressiva, que coloque em risco a qualidade de uma universidade com o prestígio da USP”. O reitor parece desconhecer o enorme movimento de empresas e instituições para acelerar os processos de inclusão pelo entendimento de que estes enriquecem cultural, técnica e financeiramente suas organizações.
A verdade é o que diz o colega Dennis de Oliveira: trata-se de uma disputa por espaços de poder. Acrescento: uma luta contra o privilégio branco, confirmado no pacto da branquitude mais uma vez explicitado pela decisão de um conselho formado com maioria de homens brancos.
Continuaremos negras e negros em nosso lugar de resistência, denunciando o mal feito e propondo ativamente soluções viáveis e eficazes para efetivamente combater o racismo no universidade, o que se concretiza com mais pessoas negras e indígenas em seu interior, ocupando os bancos estudantis, os laboratórios de pesquisa e os gabinetes da administração.
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