Universidade
Agência USP de Inovação lista mais de 150 disciplinas “empreendedoras” e “multidisciplinares”
Ao menos no plano da retórica, a Universidade de São Paulo vive uma euforia empreendedora e inovacionista, depois que o Conselho Universitário, no apagar das luzes da gestão Agopyan-Hernandes, aprovou a incorporação de um “quarto pilar”, que vem a ser exatamente o intrigante binômio inovação-empreendedorismo — embora na ocasião a proposta reitoral, de per si questionável, tenha sido chancelada quase sem debate.
Como decorrência quase imediata, em decisão posterior o Co acrescentou ao nome da Pró-Reitoria de Pesquisa a extensão mágica “e Inovação”, portanto a antiga PRP tornou-se PRPI. A euforia contagiou diferentes setores da administração, de tal maneira que as iniciativas pró-inovacionismo e pró-empreendedorismo têm extrapolado o âmbito da Agência USP de Inovação (Auspin). A Pró-Reitoria de Pós-Graduação (PRPG), por exemplo, foi tomada por um “surto docente” e passou a oferecer disciplinas voltadas para essa temática, exorbitando assim suas funções precípuas.
De acordo com o próprio site da PRPG, essa pró-reitoria tem como missão “promover e gerenciar [sic] o ensino de Pós-Graduação da USP”, sendo seu principal objetivo “fomentar a qualidade do ensino de Pós-Graduação stricto sensu, estabelecendo um patamar de qualidade e inserção internacionais”. Havendo, ainda, uma novidade: “Recentemente, incluímos na nossa missão o lema: Excelência, Liderança e Responsabilidade” —slogan marqueteiro, quiçá copiado de entidades empresariais. Nada disso, obviamente, autoriza a PRPG a comportar-se como unidade de ensino que ela não é.
No entanto ela oferece atualmente pelo menos cinco disciplinas, quatro das quais integram uma lista de 154 “disciplinas empreendedoras” (sic) elaborada pelo Núcleo de Empreendedorismo da USP (NEU), organização que orbita em torno da Auspin e é “voltada para os estudantes”. Duas dessas disciplinas da PRPG começaram a ser ministradas já em 2019: “Inovação e Empreendedorismo” (PRG004) e “Fundamentos em Empreendedorismo” (PRG005), ambas tendo entre seus docentes responsáveis o coordenador da Auspin, professor Luiz Henrique Catalani. Outras duas foram ativadas em 2021: “Laboratório de Inovação e Empreendedorismo” (PRG0016) e “Como Criar Uma Startup” (PRG0017).
Outra disciplina oferecida pela PRPG, “Formação de Cientista Empreendedor” (DPG5011), já foi objeto de reportagem do Informativo Adusp Online publicada em fevereiro último. Agora, dando continuidade aos seus planos, essa pró-reitoria oferece um “Programa de Formação Complementar – Oficina de Empreendedorismo”, exclusivamente destinado a mestrandos(as) e doutorandos(as) da USP “que cursaram, ou estão cursando, a disciplina DPG5011”.
O objetivo do programa, contraditoriamente abrigado no Programa de Aperfeiçoamento de Ensino (PAE) da pró-reitoria, é “aperfeiçoar a formação” desses(as) pós-graduandos(as), “em particular no que tange a dar continuidade ao desenvolvimento de seu projeto de empreendedorismo baseado na sua tecnologia desenvolvida durante a etapa pedagógica na disciplina DPG5011”.
Assim, a PRPG pretendia ofertar, durante o segundo semestre de 2023, “oitenta bolsas exclusivas para alunas e alunos da USP” que viessem a participar da “Oficina de Empreendedorismo”. No entanto, a julgar pelas informações disponíveis na página da pró-reitoria, apenas 37 pós-graduandos(as) se habilitaram a participar do programa, e destes(as) somente 22 farão jus às bolsas. Os demais 15 participarão na condição de “voluntariado”.
O crescente engajamento da PRPG na senda do empreendedorismo-inovacionismo é particularmente preocupante, porque desvirtua as finalidades dessa pró-reitoria e porque amplia o espectro da mercantilização na USP. A aposta institucional no “cientista empreendedor”, cabe sempre reiterar, é um ataque ao Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP) e, por meio dele, à universidade pública, gratuita e de qualidade socialmente referenciada.
“As ciências e suas finalidades jamais deveriam se pautar pelo empreendedorismo, mas sim por questões que envolvem o conjunto da sociedade, pelos fenômenos que se relacionam com as mais diversas áreas de conhecimento”, considera a professora Michele Schultz, presidente da Adusp. “A formação, além da dimensão da atuação profissional, deve trazer consciência dos contextos sociais, históricos e culturais nos quais estamos inseridas e inseridos e isso vai muitíssimo além da formação para o ‘mercado’ ou para o ‘empreendedorismo’, ou ainda para o ‘inovacionismo’. Pensar essa abordagem na pós graduação stricto sensu, que pretende formar pessoas para a docência, é um verdadeiro ataque à formação reflexiva e contextualizada”, completa a docente da EACH.
Disciplinas que empreendem e disciplinas multidisciplinares?
A peculiar versão do idioma português manejada pela alta burocracia da USP criou a expressão “disciplina empreendedora”, que é totalmente imprópria. A Auspin, nas mensagens que envia seja para docentes seja para estudantes, incorporou essa expressão. Em e-mail enviado em janeiro ao corpo discente, “em parceria” com o NEU, a Auspin divulgou links de acesso (mediante o preenchimento de formulários) à “lista de disciplinas empreendedoras USP para graduação e pós-graduação”, a saber: “disciplinas de empreendedorismo intensamente multidisciplinares [sic], uma ótima oportunidade para desenvolver suas habilidades e criar iniciativas inovadoras de caráter prático, com impacto social e econômico”.
A mensagem trazia ainda um chamado aos e às discentes para que participem do NEU (“Tem interesse em impactar milhares de estudantes da USP por meio do empreendedorismo? Considere se juntar ao NEU, temos vagas abertas para 2023!”), que se apresenta como “uma instituição da USP formada por estudantes, apoiada por pesquisadores e professores, com a missão de desenvolver a cultura de empreendedorismo de startups na USP, inspirando, capacitando e conectando pessoas”, e que trabalha “para que a USP se torne uma das universidades referência em empreendedorismo no mundo, assim como Stanford, MIT e a Universidade de Tel Aviv”.
Alunas e alunos são convidados pela Auspin e por seu braço NEU a “impulsionar sua graduação com as disciplinas de empreendedorismo e inovação ofertadas pela USP”, todas reunidas pela Auspin “em um só lugar”, sendo ainda “disciplinas optativas livres que servem tanto para complementar as horas do curso, quanto para proporcionar aos estudantes enormes diferenciais com a diversidade de escolhas possíveis” (destaques no original). Graças ao Hub USP Inovação, mantido pela Auspin, “é possível você escolher e adaptar o nível de complexidade das disciplinas optativas em 4 níveis: ‘Quero aprender’; ‘Tenho uma ideia, e agora?’, ‘Preciso testar minha ideia’ e ‘Tópicos Avançados em Empreendedorismo’”.
A lista que materializa essa narrativa pretensamente atraente, ainda que um tanto simplória, é a citada no início desta matéria, composta por 154 disciplinas oferecidas por 19 unidades — com exceção de nove que são interunidades e daquelas mantidas pela PRPG (e acima citadas).
As unidades que oferecem maior número das (mal) chamadas “disciplinas empreendedoras” são a Escola Politécnica (40), a Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto (FEARP, 16), a Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA, 15), o Instituto de Matemática e Estatística (IME, 13), a Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) e a Escola de Comunicações e Artes (ECA) com 11 cada uma.
Depois vêm Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU, com sete), interunidades (sete); Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) e Escola de Engenharia de São Carlos (EESC), com cinco cada uma; Instituto de Ciências Matemáticas e da Computação (ICMC), Faculdade de Direito (FD) e PRPG, com quatro cada uma; Escola de Engenharia de Lorena (EEL) e Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos (FZEA), com três cada uma; e, com apenas uma disciplina cada, Faculdade de Medicina (FM), Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ), Instituto de Ciências Biomédicas (ICB), Instituto de Psicologia (IP), Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) e Instituto de Física de São Carlos (IFSC).
Não há surpresa no tocante às três primeiras da lista do NEU/Auspin, porque Poli, FEA e FEARP sediam, somadas, nada menos do que sete fundações privadas ditas “de apoio”, as quais dispõem de expressivo poder econômico e político e na prática ditam, há décadas, os rumos das respectivas unidades, fortemente enviesados para o mercado. Mas é possível encontrar disciplinas desse naipe em unidades ou áreas do conhecimento não tão óbvias.
No caso da EACH, a lista traz disciplinas que até fazem algum sentido para certos cursos da unidade de perfil mais “profissionalizante”, tais como “Empreendedorismo em Têxtil e Moda” (ACH2657) ou “Empreendedorismo em Informática” (ACH2008). Mas uma disciplina que não consta da lista é “Empreendedorismo em Gerontologia” (ACH3088), com carga horária total de 90 horas, criada no longínquo ano de 2011 e ativa ainda hoje, contando atualmente com 37 alunas(os).
“Empreendedorismo em Gerontologia” tem como objetivo “preparar o aluno para a participação ativa em novos empreendimentos na área da Gerontologia” e propõe-se a “simular empreendimentos na área de Gerontologia”. Porém, seu programa nada tem de específico no tocante a este ou a qualquer outro aspecto da saúde. Inclui “princípios fundamentais do empreendedorismo”, “orientações para o desenvolvimento de planos de negócio”, “caracterização de empreendimentos existentes: benchmarking”, “discussão sobre impressões e expectativas do mercado” etc.
Há outras disciplinas desse tipo em outras unidades da área da saúde. Por exemplo, a Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP) oferece desde 2021 a disciplina “Inovação e Empreendedorismo em Saúde e Enfermagem” (ERG0111), com carga horária de 30 horas e que apresenta como objetivo fazer com que o(a) aluno(a) “seja capaz de compreender conceitos e abordagens fundamentais relacionadas à inovação, ao empreendedorismo, intraempreendedorismo [sic] e empreendedorismo social que favoreçam o desenvolvimento de conhecimentos, habilidades e atitudes que contribuem para identificação de problemas e soluções inovadoras relacionadas a assistência, educação, administração e gestão em saúde e enfermagem”. A ERG0111 também não consta da lista do NEU/Auspin.
A FM mantém um curso de nome semelhante, “Empreendedorismo e Inovação em Saúde” (MSP4061), ativado em 2020, que se propõe a fornecer “noções básicas de estratégias e regulamentações envolvidas nos processos de empreendedorismo e inovação”. Ao contrário de outras disciplinas, esta parece dar maior atenção a aspectos frequentemente negligenciados, ao fixar como um de seus objetivos “capacitar o aluno para o desenvolvimento de projetos de empreendedorismo e inovação em produtos e processos na área de saúde que sejam relevantes para o desenvolvimento e sustentabilidade da atenção à saúde”, e ao incluir no programa um módulo denominado “Aspectos éticos e regulatórios e propriedade intelectual”. Por outro lado, embora faça referência ao “ecossistema brasileiro” de empreendedorismo, toda a bibliografia utilizada é em inglês e quase toda do MIT.
A FMVZ oferece a disciplina “Empreendedorismo” (VCI5788), ativada em julho de 2022, cuja ementa é bastante elucidativa a respeito de seu propósito. “Promover ampla visão dos conceitos básicos e linguagem do Empreendedorismo, bem como despertar e estimular a capacidade reflexiva acerca das atitudes Empreendedoras, assim como da transferência de tecnologia da Universidade para o Mercado”, eis seu objetivo. A sua justificativa é igualmente transparente: “Faz-se necessário [sic] a inclusão de conceitos empreendedores e sobre inovação para os cursos da área da Saúde, demanda exigida hoje pelo mercado”.
Salta à vista o teor acrítico de ementas e enunciados de diversas das disciplinas, que repetem fórmulas consagradas no jargão empresarial. Por exemplo: será que é mesmo necessária a inserção de “conceitos empreendedores” nos cursos de saúde? Qual é a legitimidade do mercado para fazer tal exigência? Quais as implicações éticas de se empreender em área tão sensível como a saúde? Talvez essas questões sejam abordadas nas aulas, mas não há indícios disso nos textos disponíveis.
“O preocupante é a adesão acrítica que beira o dogmatismo nessa seara do empreendedorismo. Fico curioso de saber se há nessas disciplinas qualquer dimensão histórica e crítica do empreendedorismo, para que o fenômeno possa ser também entendido em contexto e em suas dimensões ideológicas. Resvala num discurso de auto ajuda que rebaixa o papel da universidade pública”, pondera ao Informativo Adusp Online o professor Renato Levi, do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA.
Mestrado Profissional stricto sensu em Empreendedorismo
A FEA, por sua vez, chegou a instituir um Mestrado Profissional em Empreendedorismo, “de natureza stricto sensu e gratuito”, que oferece, entre outras, a disciplina “Laboratório de Inovação e Empreendedorismo” (EAP5026), que objetiva “contribuir para a formação de empreendedores inovadores, bem como fomentar o desenvolvimento de empresas nascentes de base tecnológica (startups) e iniciativas de corporate venture (ou seja, investimentos de empresas estabelecidas em startups)”. Trata-se de uma disciplina que “busca integrar e aplicar os conceitos abordados em outras disciplinas relacionadas ao empreendedorismo e, em particular, aquelas oferecidas pelo Programa de Mestrado Profissional em Empreendedorismo”, sendo que seu conteúdo “pode ser considerado como uma etapa de pré-aceleração de novos negócios”, de modo que se pretende “dar suporte ao aluno para o desenvolvimento da estratégia do seu empreendimento e a definição do seu modelo de negócio”.
Como vimos acima, a PRPG oferece uma disciplina com idêntico nome: “Laboratório de Inovação e Empreendedorismo” (PRG0016), com carga de 120 horas e cujos objetivos e programa são semelhantes à da disciplina da FEA. Ambas têm como base conceitual “a inovação de modelo de negócio, que é estudada por meio de um método estruturado, denominado Jornada da Inovação de Modelo de Negócio”. Chama atenção o fato de que a extensa bibliografia é toda em inglês, tendo como única exceção a tese de livre-docência do professor Marcelo Pedroso (FEA), responsável pela disciplina.
Embora inclua um alto número de disciplinas efetivamente dedicadas ao mundo dos negócios, o rol organizado pelo NEU/Auspin incluiu diversas que não têm relação clara com empreendedorismo ou inovação. É o caso de “Liderança e Comportamento Humano” (PST0391), do IP. De acordo com o tópico “O que agrega ao empreendedor?”, essa matéria permite “Refletir sobre a condição social do ser humano e suas implicações na organização do trabalho como atividade grupal”, explicação um tanto vaga para justificar sua inserção na lista.
Do mesmo modo, a maior parte das 13 disciplinas do IME citadas não tem vinculação, sequer remota, aos temas do “quarto pilar”. São os casos de “Introdução à computação” (MAC0110 e 2166), “Introdução à computação para Ciências Humanas” (MAC0113), “Introdução à Computação para Ciências Exatas e Tecnologia” (MAC0115), “Princípios de Interação Humano-Computador” (MAC0446), “Técnicas de Computação” I e II (MAC0216 e 0218).
Aspecto digno de nota da lista de “disciplinas empreendedoras” é que a FM e a Esalq, duas unidades que, historicamente, apresentam extenso e profundo envolvimento com fundações privadas ditas “de apoio” e com o processo de mercantilização da universidade, possuem cada uma delas uma única disciplina desse tipo na lista do NEU/Auspin. O que sinaliza, quem sabe, a opção por uma dedicação prioritária aos projetos (altamente) remunerados que beneficiam grupos de docentes dessas unidades, e por outro lado atenção bem menor ao propósito da Reitoria de estimular “proselitismo pedagógico” em favor do empreendedorismo-inovacionismo.
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