Universidade
Resultados do projeto “MVV2029”, apresentados no Co de 20/8, mostram planejamento estratégico da USP preso a chavões e imune ao debate democrático
A reunião de 20 de agosto do Conselho Universitário da USP aprovou resolução que estabelece “Missão”, “Visão” e “Valores” da universidade. A definição de tais conceitos foi um dos principais objetivos do projeto da Reitoria intitulado “Missão, Visão, Valores, Objetivos e Metas para Pró-Reitorias e Gestão” (MVV2029), que teve início em dezembro de 2023 e envolveu, por meio de seminários e reuniões, todo o primeiro escalão da administração central, além de 52 diretores(as) ou vice-diretores(as) de unidades e 220 chefes de departamento.
A ideia inicial era emendar o Regimento Geral da USP para enxertar os aludidos enunciados, mas a gestão Carlotti Jr.-Nascimento Arruda recuou desse propósito após os ponderados pareceres da Procuradoria Geral (PG-USP) e da Comissão de Legislação e Recursos (CLR) que indicaram que seria mais apropriado editar uma resolução. O texto proposto ao final do projeto apresentado ao Co foi integralmente contemplado na resolução aprovada.
Assim, tem-se agora que a “missão” da USP é a seguinte: “Formar profissionais líderes e cidadãos conscientes de seu papel social. Produzir, transmitir e aplicar o saber e a ciência em benefício da sociedade, por meio de ensino, pesquisa, inovação, extensão, cultura, arte e difusão do conhecimento”. A “visão”, por sua vez, exige ser “reconhecida nacional e internacionalmente por sua liderança e qualidade na formação de profissionais, pesquisa, impacto no desenvolvimento social, inovação, cultura, arte, diversidade, meio ambiente e sustentabilidade”.
Salta à vista que, para chegar-se a enunciados tão frugais quanto concisos, não seria necessário despender tanto tempo, energia e recursos. Afinal de contas, com essa finalidade foram realizadas diversas reuniões e, entre 10 e 27 de junho, workshops presenciais em seis campi — Piracicaba, Pirassununga, Lorena, Bauru, Ribeirão Preto e São Carlos.
Também quanto aos “valores”, não é possível identificar maiores novidades: “Guiar-se pela excelência acadêmica, respeito aos direitos humanos e compromisso com a democracia. Na qualidade de instituição pública, orienta-se pela autonomia universitária, ética, equidade, diversidade, colaboração interinstitucional, sustentabilidade e responsabilidade social”. É uma formulação demasiado modesta para uma universidade fundada há nove décadas, completadas neste ano, e que gosta de citar a si própria como sendo “de classe mundial”. Reflete, contudo, a adesão totalmente acrítica a postulados que orientam um projeto neoliberal de universidade.
Como já afirmado em matéria anterior sobre o “MVV2029”, o vocabulário utilizado para nomear esse projeto tem indisfarçável viés de mercado. A tríade “missão/visão/valores”, bem como a onipresente “metas”, são “jargões surrados do mundo empresarial”, que no entanto foram a tal ponto introjetados em determinados setores do poder público que atualmente é quase impossível encontrar sites de órgãos de governo e universidades públicas que não disponham, no seu menu, de tais “palavras-fetiche”.
A documentação do projeto, disponível aqui, contém fartos exemplos de parâmetros e métricas empresariais. Um dos materiais que informaram os workshops foi denominado “Síntese do Benchmarking de estratégias publicizadas de universidades de excelência acadêmica e de impacto social identificadas em rankings internacionais Times Higher Education-THE e QS World University), identificando aspectos considerados em seus planos estratégicos” (p. 16). Ainda, “o MVV2029 tem como desafio deflagar [sic] em toda a instituição um pensamento estratégico, enquanto fluxo sistêmico, ou seja, professora ou professor, técnica ou técnico e estudante, [devem] internalizar a visão uspiana nas suas atividades” (p. 19).
Ademais, embora haja referência à “participação de mais de 600 atores, entre diretores, presidentes das comissões de graduação, pós-graduação, pesquisa, cultura e extensão, inclusão e pertencimento, representações e partes interessadas” (p. 20), o coeficiente de democracia do projeto é questionável, uma vez que as conclusões de workshops e GTs dependeram de posterior validação da Reitoria, além da ausência de participação de vários setores da comunidade acadêmica. Cumpre lembrar que a formação dos órgãos colegiados da USP não cumpre sequer a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB).
Até mesmo a análise de conteúdo das “respostas de campo” provenientes dos formulários eletrônicos preenchidos no deslanchar do processo foi submetida à apreciação reitoral. “Todas as análises serão consolidadas pela equipe executiva e validadas junto à Comissão Assessora. A validação final será realizada pela Vice-Reitora e pelo Reitor, assim como todos os documentos a serem disponibilizados” (p. 17-18).
“Objetivos estratégicos” permanecem no terreno das obviedades
Outro resultado crucial desse planejamento são os “objetivos estratégicos”, definidos e agrupados por áreas que correspondem à atuação de cada uma das pró-reitorias, bem como à área de gestão. Na reunião do Co de 20 de agosto, cada pró-reitor ou pró-reitora apresentou esses objetivos ou metas prioritárias. Mas, também nessa seara, foram poucas as novidades. Assim, os 12 objetivos estratégicos da USP e a maioria dos objetivos estratégicos específicos das pró-reitorias não conseguem ir além de fórmulas conhecidas e recorrentes, às vezes atualizadas com menções a expressões da moda, como os “Objetivos de Desenvolvimento Sustentável” (ODS) definidos pela Organização das Nações Unidas (confira aqui a relação completa).
O primeiro desses 12 objetivos estratégicos é “Formar cidadãs(ãos) profissionalmente capacitadas(os) a enfrentar desafios da sociedade contemporânea em consonância com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável”, o que, em sociedade tão desigual como a brasileira, é uma definição demasiadamente vaga e convenientemente genérica. Neste como nos demais objetivos, não há qualquer menção a valores democráticos ou à premente necessidade de combate às desigualdades estruturais que afetam o Brasil — econômicas, sociais, culturais, regionais, raciais, de gênero etc.
Há uma recusa deliberada em conferir protagonismo à universidade como possível partícipe no debate político nacional, na formulação de propostas que abordem grandes questões como a soberania nacional, a inserção do Brasil na América Latina e no mundo, a superação das desigualdades sociais e do racismo estrutural que remonta ao Brasil Colônia, entre tantas outras.
As desigualdades somente são referidas, porém num recorte mais modesto, no terceiro objetivo: “Promover a diversidade e equidade socioeconômica, de gênero e étnico-racial na USP e em ações transversais em Ensino, Pesquisa, Extensão, Gestão e Convivência”. Por outro lado, um promissor objetivo específico da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão (PRCEU), “Fortalecer o papel da USP como interlocutora ativa na construção de políticas públicas”, foi descartado como objetivo estratégico da universidade.
Não surpreende que o quarto objetivo estratégico seja coerente com a guinada cada vez mais forte das gestões reitorais, desde 2014, em direção ao projeto de universidade neoliberal: “Fortalecer a cultura de empreendedorismo/inovação e seu suporte jurídico-administrativo na Universidade”. Esta é a fachada sob a qual as atividades acadêmicas e de pesquisa são reorientadas para atender, mais e mais, a interesses privados e de mercado.
Curiosamente, não existe a mesma preocupação no tocante à extensão. Embora considerada desde sempre um dos “pés” da universidade pública, a extensão não foi definida pelo “MVV2029” como objetivo estratégico em si. No entanto, de modo contraditório, ela é citada em dois outros objetivos: “Valorizar atividades de extensão na carreira docente e de servidores técnico-administrativos” e “Aprimorar a divulgação das atividades de cultura e extensão da USP para a sociedade”. Tudo apropriadamente vago e genérico.
Parece que o carro foi colocado adiante dos bois: há que valorizar a extensão na avaliação das carreiras; há que aprimorar a divulgação das atividades de extensão; mas por algum motivo não se falou em “criar uma cultura de extensão”, ou “fortalecer a cultura de extensão”. Talvez porque extensão autêntica seja necessariamente gratuita. Talvez porque isso seja contraditório com o estímulo da Reitoria a atividades externas remuneradas e ao empreendedorismo “científico”.
A propósito, uma das metas específicas da PRCEU, “Consolidar a curricularização das atividades de extensão”, suscitou extenso comentário de Mariana Moreira Belussi, conselheira representante discente e presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto (Faculdade de Direito). Ela defende a extensão como fundamental, mas considera que a curricularização em andamento está ferindo a segurança jurídica dos cursos.
“A maneira como esse processo está sendo conduzido para os estudantes, como um requisito obrigatório de 10% da graduação, está sendo muito pouco transparente”, disse Mariana ao Co. “A legislação sobre a curricularização só foi protocolada no site da faculdade [FD] e outros meios de comunicação da universidade em novembro, sendo ela exigida desde janeiro de 2023. Então estão fazendo uma exigência retroativa de uma quantidade significativa de créditos, e exigindo que todos os cursos tenham essa curricularização da mesma forma”.
“Não há plano de carreira dos funcionários”, protesta representante do Sintusp
Outro dos novos objetivos estratégicos da USP envolve as relações de trabalho mantidas com o corpo funcional da universidade: “Aprimorar as condições de trabalho, promover capacitação, políticas de avaliação contínua e desenvolvimento de carreira, para valorização profissional dos servidores técnico-administrativos e docentes”. Se não são apresentadas as ações para se atingir tais objetivos, com previsão orçamentária inclusive, estas e outras medidas parecem mais clichês que poderiam sair do DRH de qualquer empresa privada, exceto pela palavra “servidores”.
Vale lembrar que há anos o Fórum das Seis apresenta na Pauta Unificada de reivindicações um conjunto de itens referentes às condições de trabalho nas três universidades estaduais, e o Cruesp sempre se recusa a discutí-los. Na USP em particular ocorreu, a partir da gestão de M.A. Zago (2014-2017), um dramático enxugamento do quadro de servidores(as) técnico-administrativos(as), por meio do Programa de Incentivo à Demissão Voluntária (PIDV), e consequente sobrecarga de trabalho. A tardia recomposição, na gestão atual, cobriu apenas 400 vagas.
Aliás, na mesma reunião do Co de 20 de agosto, os representantes dos(as) técnico-administrativos(as) criticaram duramente o modelo de avaliação e progressão funcional, baseado em “pressupostos neoliberais”, que vem sendo formulado por uma consultoria privada contratada pela Reitoria, à inteira revelia do Sindicato dos Trabalhadores (Sintusp).
“O nosso problema de fundo é que não há um plano de carreira dos funcionários da USP, e o que está sendo proposto não vai resolver isso”, protestou o conselheiro Reinaldo Santos de Souza. Por outro lado, a chamada “avaliação contínua”, especialmente no caso da categoria docente, é uma fonte permanente de assédio moral e de adoecimento.
Entre os objetivos estratégicos definidos pelo Co foram incluídos ainda “Promover inclusão e permanência estudantil de qualidade para discentes de graduação e pós-graduação em situação de vulnerabilidade socioeconômica” e “Valorizar as atividades de ensino e aprimorar a formação pedagógica docente”. Ambos são relevantes, esperando-se que não fiquem no plano da retórica. O movimento estudantil precisou ir à greve em 2023 para garantir os compromissos de ampliação do corpo docente e da quantidade de bolsas, que todavia ainda não foram integralmente cumpridos.
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