O Informativo Adusp Online teve acesso a imagens que demonstram que a prática de trote humilhante e violento continua a ocorrer na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP), em Piracicaba. Captadas nesta segunda-feira (5 de maio), na área central do campus, uma delas mostra calouros da Esalq — “bixos”, no jargão utilizado pelos estudantes — deitados de bruços no chão e com a cabeça coberta por chapéus, tendo em volta dezenas de estudantes em pé.

Um vídeo feito na mesma ocasião mostra a presença de viaturas da Guarda Universitária, cujos agentes se mantiveram, porém, a dezenas de metros de distância do local do trote, realizado em frente ao Prédio Central da Esalq. De acordo com o narrador, havia “pessoas sendo agredidas”.

Trote realizado em frente ao prédio central do campus da Esalq em 5 de maio último
Calouras e calouros agrupados à espera de saírem para “repúblicas”, onde o trote continuará

Já são três as leis estaduais paulistas que proíbem a prática de trote violento ou humilhante. A primeira delas é a lei 10.454/1999, que veda “a prática de qualquer tipo de trote que possa colocar em risco a saúde e a integridade física dos calouros das escolas superiores”. Já a lei 15.892/2015 torna ilegal “o trote nas escolas da rede pública em qualquer nível de ensino”.

A mais recente é a lei 18.013/2024, que proíbe “a realização de atividades de recepção de novos estudantes, ou ao longo do ano letivo, em instituições de educação técnica e superior que envolvam coação, agressão, humilhação, discriminação por racismo, capacitismo, misoginia ou qualquer outra forma de constrangimento que atente contra a integridade física, moral ou psicológica dos alunos”.

Diferentemente das anteriores, esta lei determina que compete às instituições de ensino “adotar medidas preventivas para coibir a prática das atividades a que se refere o artigo 1°, dentro e fora de suas dependências”, bem como “instaurar processo disciplinar contra os alunos e funcionários que descumprirem a vedação de que trata o artigo 1°, ainda que fora de suas dependências, e aplicar-lhes as penalidades administrativas, que podem incluir o desligamento da instituição, sem prejuízo das sanções penais e civis cabíveis”.

Ainda segundo a lei 18.013/2024: “A instituição de ensino que se omitir ou se mostrar negligente no cumprimento das competências previstas neste artigo será punida administrativamente […] sem prejuízo de eventuais sanções penais e civis aplicáveis aos seus dirigentes por cumplicidade”.

O Informativo Adusp Online encaminhou à Assessoria de Imprensa da Esalq duas questões sobre o caso, a serem respondidas pela Diretoria da unidade, o que não aconteceu até o fechamento desta matéria. Caso a Diretoria da Esalq venha a se pronunciar, este texto será devidamente atualizado.

“É preciso chamar essa gestão à responsabilidade”, diz docente sobre omissão da Esalq

Um dos maiores especialistas do país nos estudos sobre a prática de trote, o professor titular Antonio Ribeiro de Almeida Jr., do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da Esalq, diz ao Informativo Adusp Online que considera muito grave a situação, uma vez que a direção da unidade vem até agora se omitindo. “Já passou da hora de haver uma ação mais enérgica da universidade contra isso”, declara Almeida, que é autor de Anatomia do trote universitário (Hucitec, 2016) e de outras obras sobre o assunto.

“Isso está ocorrendo em frente ao prédio principal da Esalq, que é o prédio onde ficam a Diretoria e a Prefeitura do Campus. Isso tem ocorrido todos os dias, no horário do almoço e no final da tarde. É um procedimento que está na última semana, eles vão fazer no dia 13 de maio ou logo depois a chamada ‘Libertação dos Bixos’, ironizando a questão da escravidão no país. Então é muito grave, o trote está proibido”, adverte.

Almeida lembra que, além das três leis estaduais que proíbem o trote, há também portarias da universidade a respeito, e uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) foi realizada na Assembleia Legislativa (Alesp) para discutir o tema. Observa que há fartas evidências e suporte teórico para a proibição desse tipo de prática, citando autores como Antonio Zuin (Universidade Federal de São Carlos), Marco Akerman (Faculdade de Saúde Pública da USP), Silmara Conchão (Faculdade de Medicina do ABC) e Felipe Scalisa, médico formado pela Faculdade de Medicina da USP e autor da obra Trote e Totalitarismo (Alameda, 2024).

“Legalmente está proibido. Mas isso não acontece, a direção não toma providência, a Guarda do campus está consciente dos problemas. Isso [inação e omissão] é uma autorização para que esse grupo sequestre o campus. Esse grupo [de perpetradores de trote] ameaça todo mundo, creio que inclusive a diretoria, o prefeito, que não têm coragem de se posicionar e fazer cumprir a lei estadual e as portarias da Reitoria”, acrescenta o docente da Esalq.

Aspecto do trote: de joelhos no asfalto, calouras informam o “nome esalqueano” que receberam
Discentes ajoelham-se perante professor: ritual obrigatório para disputar empregos no futuro

“É uma situação bastante grave, afrontosa, é um desafio claro à norma. Esse grupo precisa ser punido, porque não têm o comportamento ético apropriado ao convívio universitário. Na minha pesquisa fica claro que esse é um grupo político que visa controlar o mercado de trabalho, controlar o campus, controlar o currículo, e é totalmente favorável a práticas agrícolas que são muito danosas ao meio ambiente, danosas socialmente”, explica. “Esse grupo tem apoio de ex-alunos, tem apoio de profissionais que estão no mercado, tem apoio de docentes. Então ele se sente poderoso, se sente em condições de colocar um desafio à direção da universidade, ao reitor, ao diretor, ao prefeito do campus e assim por diante”.

Assim, prossegue Almeida, para enfrentar o problema as autoridades da Esalq e da universidade precisam romper com o grupo que promove os trotes, e “caracterizar esse grupo como de fato ele é: está fora da legalidade, está fora de um princípio de convívio igualitário, está fora da democracia”. É um grupo que se impõe pela força, pela coerção, define o pesquisador. “Isso recrudesceu depois da pandemia, acredito que pela falta de intervenção da atual gestão. É preciso chamar essa gestão à responsabilidade”.

Ainda segundo Almeida, os trotes não ocorrem somente na Esalq, mas em várias unidades. “Os dirigentes sempre dizem que nada acontece, que está tudo bem. Isso está relacionado a diversas formas de violência que ocorrem dentro do campus, como a CPI apontou muito claramente em 2014 e 2015: violências de ordem sexual e outras. O funcionamento é de uma gangue, mas é gente com recursos, com apoio, com força política, e tudo fica por isso mesmo, como se o campus pertencesse a eles, como se fossem os donos do espaço, que é mantido por dinheiro público e deveria ser mantido de forma democrática”.

Manifesto assinado por oito entidades exige que a Reitoria tome providências

Um documento contra o trote, assinado por oito entidades e grupos e intitulado “Manifesto Público à Universidade de São Paulo: até quando a USP será conivente com a ‘tradição’?” (destaques no original), requer à Reitoria e à Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) da USP providências contra “a perpetuação de práticas criminosas, violentas, simbólica e historicamente racistas que ocorrem, ano após ano” na Esalq. A versão final do manifesto foi publicada no dia 9 de maio.

“Lamentavelmente, gestores(as) do campus de Piracicaba permanecem omissos(as). Não seria conivência diante de práticas de trote realizadas de forma ostensiva no início de cada semestre, em frente ao prédio central da Universidade? As cenas de calouros ajoelhados perante veteranos, comumente classificadas como ‘tradição’, materializam uma hierarquia de dominação e submissão incompatível com os valores de uma universidade pública e democrática. Tais práticas remontam a uma sociedade colonial e escravocrata que jamais deveria encontrar em um espaço de uma instituição de ensino comprometida com a ciência, a cidadania e os direitos humanos, que reconhece o histórico de violência e opressões da sociedade brasileira”, destaca o texto.

“Esses atos, além de moralmente inaceitáveis, violam a lei 18.013/2024, que obriga instituições de ensino a coibir e responsabilizar práticas ilegais de recepção, constrangimento e violência contra estudantes. Ainda assim, trotes abusivos persistem na universidade, com a anuência de docentes e ex-alunos, especialmente entre os que se identificam como ‘esalqueanos’. As violências se estendem para repúblicas, festas e espaços públicos de Piracicaba, com recorrentes relatos de assédio”, prossegue.

“Destaca-se, de forma alarmante, a chamada ‘libertação dos bixos’, realizada na semana de 13 de Maio (marco da abolição da escravidão no Brasil), em que calouros são coagidos a atos vexatórios como sujar-se com borra de café e tinta preta, andar amarrados nas ruas da cidade e acompanhar veteranos de forma completamente submissa. Esse tipo de performance pública reencena de forma grotesca a escravidão, desrespeitando a memória histórica e a dignidade humana, podendo denotar atitude criminosa por se caracterizar como racismo”, enfatiza. “Diante destes absurdos, perguntamos: até quando a Universidade de São Paulo será negligente com os seus próprios estudantes e silenciará diante de ações que reforçam estruturas históricas de opressão racial e social? Desta ótica, é absolutamente necessária a proibição da aberração representada pela ‘libertação dos bixos’.”

Assinam o manifesto a Associação de Pós-Graduação da Esalq (APG-Esalq), a Associação de Pós-Graduação do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (APG-CENA), a Adusp, o Coletivo Negro Baobás, o Grupo de Trabalho RUCAS, o Coletivo LGBTQ+ (Integra-Esalq), o Centro Acadêmico de Gestão Ambiental (CAGeA) e o Movimento “Juventude Travessia”.

(Texto atualizado em 10/5 para incorporar a versão final do manifesto das entidades)

EXPRESSO ADUSP


    Se preferir, receba nosso Expresso pelo canal de whatsapp clicando aqui

    Fortaleça o seu sindicato. Preencha uma ficha de filiação, aqui!